sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Ainda Dias de Melo

Conheci Dias de Melo estava eu na Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada, acabadinho de me libertar dos calções curtos da Primária. Era, se não erro, professor de Português, sem grande sucesso; homem pausado, no andar e nas falas, pendurado no seu cachimbo - anos depois assinaria crónicas num jornal micaelense, sob o título de "Fumo do meu cachimbo” - e com um sotaque "picaroto" fechado, nada o ajudava enquanto comunicador.
Perdi-o de vista depois desse tempo de escola, para só nos cruzarmos, de novo, logo a seguir ao 25 de Abril, no MDP-CDE, porto de abrigo enquanto não surgiram os Partidos, para os que acreditavam que, com a Liberdade, tudo viria… não imaginando, por um momento sequer, as desilusões (e tropelias)que o futuro nos traria.
Entretanto, li "Pedras Negras", "Mar Rubro" e "Mar pela Proa", a trilogia por onde espalhou o seu amor pela ilha-montanha, pelas suas gentes e pelo mar - mar que ele conhecia bem, porque também lá andou atrás da baleia. São livros essenciais para conhecer a vida dos que são (opinião minha, vale o que vale) os melhores senhores do oceano, no Atlântico Norte: os "picarotos", lavradores do mar que, trabalhando a terra, lutando pela vida em chão nem sempre quieto, tudo largavam quando o som do foguete os chamava para arriar as canoas e irem de abalada, atrás da baleia, até onde fosse preciso.
Guardo do Dias de Melo, em contraste com a sua tranquila forma de estar, a vivacidade e brilho dos seus olhos - era através deles que se expressava e que nos mostrava o que lhe ia na alma. E tenho ideia de que sempre andou pelo lado certo da vida.
Os Açores, depois de Emanuel Félix, perdem outro nome de referência, nas suas Letras.
João Coelho

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Adeus a DIAS DE MELO

Velha Professora
A velha Professora uma vez mais envolveu num olhar magoado o prato de amêndoas sobre o naperon estendido na taça da mesinha oval, em frente ao divã e à poltrona de vimes do canto, deu alguns passos trôpegos, hesitantes, sentindo no corpo franzino o gelo húmido da tarde, e ficou de pé, os cotovelos apoiados no peitoril, por dentro da janela fechada.
O calendário marcava já o começo da Primavera, o tempo, porém, continuava de Inverno rigoroso, áspero, agressivo, frio, muito frio – tão rigoroso, tão áspero, tão agressivo, tão frio que ainda as parreiras se estendiam pelo burgalhau das vinhas, negras como braços de cadáveres velhos de dedos retorcidos e pele encarquilhada, e as flores, que, num dia, apareceram brancas e perfumadas – estrelas pequeninas suspensas entre a folhagem verde do incenseiro de ao pé do muro do quintal – logo na manhã seguinte eram apenas migalhas de sonho que o vendaval nocturno destroçara e derramara pelo chão. Também a figueira plantada rente ao maroiço, uma tarde com folhinhas tenras rebentando nas pontas, logo ficara novamente com os galhos nus, cinzentos, lívidos, como certamente o foram outrora os da figueira em que se enforcou Judas.
A velha Professora aconchegava melhor o xaile de merino castanho ao pescoço magro e aos ombros estreitos, olhava a horta onde as batatas semeadas nem chegaram a abrolhar, as parreiras tristemente ressequidas, a figueira nua, o incenseiro depenado, ao longe, no fundo da paisagem, recortava-se, triangular, no céu esgazeado, a descomunal mancha branca da montanha, com a neve a escorrer-lhe pelos flancos, a alcançar as pastagens, a babujar as casas e as terras lavradias mais do alto. O mar, não o podia ver daquela janela, mas ouvia-lhe os rugidos e os lamentos das vagas, que galgavam, na costa próxima, as penedias bravas.
O sentimento de desolação que desabava sobre a Ilha, assim triste, assim parda, quando devia já revestir-se das galas faustosas das verduras novas, da policromia das flores, da sinfonia festiva dos canários e tentilhões a saltitar pelos ramos das faieiras, pelos cocurutos dos maroiços, pelos festos das paredes, doía-lhe na pele, na carne, no sangue, nos ossos, como na alma lhe doía a tortura da vida.
O Inverno, não havia que duvidar, assentara, naquele ano, arraiais nos penhascos da Ilha e para permanecer muito mais que o desejado, se era que havia alguém que o desejasse – ela, a velha Professora, tinha-lhe horror, ali metida, sem ninguém, solteira como sempre fora, entre as quatro paredes daquela casa que herdara dos antepassados.
Dantes, fizera da escola o seu lar e das alunas a sua família, principalmente depois que lhe morreram, primeiro o pai, a seguir a mãe, e os sobrinhos, que tomara à sua conta e educara pelo desaparecimento do irmão num desastre de baleia no Canal e falecimento prematura da cunhada levada por um cancro, se haviam, feitos homens, ido a tratar da vida nas lonjuras do mundo. Todavia, embora já só, mal dava pelo Inverno, mal sentia o vazio e a solidão à sua volta – lá estava a escola, lá estavam as alunas, faziam-lhe esquecer todo o Inverno, preenchiam-lhe todos os vazios, povoavam-lhe todas as solidões. Tudo, porém, se tornou diferente no dia em que, vencido o limite da idade legal para o exercício de qualquer função pública, a escorraçaram, brutalmente, como quem dá um pontapé num cão inútil, da escola e a apartaram das trinta e tantas crianças a quem ensinava a Instrução Primária, filhas e netas das antigas discípulas que, na extensa caminhada de cinquenta anos bem medidos e bem contados, fora, em cada ano que passara, ensinando, educando e levando, em Julho, à vila, ao acto solene do exame da quarta classe com emoção igual à da mãe que acompanha a sua menina ao altar para a cerimónia do casamento, mesmo depois que uma Lei da Ditadura fascista tornara obrigatório o ensino apenas até à terceira classe, Lei essa que para ela era como se não existisse, não passava de um absurdo consciente e de má fé, “acabaram com a quinta classe, agora tornam a quarta facultativa, mais cedo ou mais tarde com a quarta acabam igualmente, querem mas é fazer deste País o paraíso dos analfabetos para, com a ignorância do povo, melhor e à vontade ao povo os ricos explorarem”, dizia e rematava, “mas, enquanto isso não acontecer, aluna minha só com o seu exame da quarta classe deixarei ir para casa”.
Assim pensava, assim procedia, passava o tempo sem se aperceber de que o tempo passava, mas, obrigada (com a mais rude e grosseira brutalidade) a abandonar a escola, a apartar-se das suas alunas, tudo se tornara diferente, terrivelmente diferente, e ela vira-se como um barco destroçado, sem leme, sem bússola, sem governo, sem rumo, à deriva sobre as incertezas de um mar desconhecido.
Na torre da igreja, à ilharga do pequeno largo do centro da freguesia, aberto para a amplidão dos horizontes do oceano, o sino derramava, sobre a terra e as águas salgadas, as pessoas e as coisas, o bronze austero e amargo das cinco badaladas das trindades, enquanto uma nuvem, negra por cima da brancura da neve, crescia, arredondada, inchava, acabava por cobrir a montanha, alastrava pelo céu.
Mais encolhida, mais arrepiada, mais enregelada, a velha Professora afastou-se da janela, sentou-se na poltrona de vimes no canto, ajeitou o coxim por baixo das nádegas descarnadas, a almofada por trás das costas mirradas, uma vez mais aconchegou melhor o xaile de merino castanho no pescoço magro, engelhado, e nos ombros estreitos descaídos. Na sua frente, sobre o naperon estendido na taça da mesinha oval, o prato com amêndoas… à espera…
O calendário marcara o início da Primavera – e não tardaria a noite a trespassar os vidros da janela fechada, a noite tenebrosa de Inverno, que a amedrontava, que lhe enchia a casa e a alma de terrores… Começavam as primeiras sombras a insinuar-se, silenciosas e escorregadias como fantasmas, no quartinho em que se encontrava, a envolver as fotografias doutros tempos, dos sobrinhos miúdos, da mãe ainda nova, do pai ainda jovem, do irmão, valente baleeiro, que sucumbira levado numa linha [1] e afogado nas ondas, das festas escolares que promovera, de grupos de alunas que tivera… pedaços inertes da vida que passara…
[…]
Dias de Melo, Inverno sem Primavera

______________________________

[1] Linha: aqui, cabo com uns 600 metros de comprimento por cerca de 1 centímetro de diâmetro que, arrumado em duas selhas e amarrado ao cabo do arpão, liga, depois de arpoada, a baleia à canoa.

*************************************************************

Dias de Melo nascido na freguesia da Calheta de Nesquim, ilha do Pico, em 8 de Abril de 1925, morreu hoje, 24 de Setembro de 2008, em Ponta Delgada.

Os escritores que amamos viverão dentro de nós. PARA SEMPRE!

domingo, 14 de setembro de 2008

AS MEMÓRIAS DO JOÃO COELHO...

Castelo de Vide e os Açores
Os tons de verde em Castelo de Vide foram a primeira "marca" que me fez lembrar S. Miguel, quando conheci a "Sintra do Alentejo" nos idos de 80... Outra marca, a pronúncia dos locais, com o "u" acentuado, semelhante à micaelense. Dizia-me Carolino Tapadejo, então Presidente da Câmara, que isso teria a ver com a ida de mais de uma centena de famílias judaicas para S. Miguel e com a sua fixação, na zona de Castelo de Vide, no regresso ao Continente ( e, se não erro, o Município local terá colaborado com a Câmara da Vila da Povoação, na realização de trabalho de investigação sobre a matéria).
Castelo de Vide é terra natal de Mouzinho da Silveira que tem fortes ligações aos Açores, para onde foi forçado a deslocar-se em 1828, fixando-se na ilha Terceira. Em 1832 forma-se, naquela ilha, o Ministério Liberal, com Mouzinho e Almeida Garrett, entre outros; ocupando a pasta da Fazenda, Mouzinho toma uma série de medidas em prol da melhoria das condições de vida dos açorianos - uma delas, para protecção da ilha do Corvo, leva a que a população envie um grupo de representantes à ilha Terceira (em barco a remos!) para agradecer a Mouzinho da Silveira. O político, sensibilizado pela atitude, diz então que, quando morrer, quer ser sepultado no Corvo... o que acabará por não acontecer.
Outro filho ilustre de Castelo de Vide, é Salgueiro Maia, capitão de Abril. No pós 25 de Novembro, foi colocado em S. Miguel, no Batalhão de Infantaria nº18, provavelmente por o considerarem um perigoso "esquerdista"... E por lá andou, passando por provocações várias de "democratas" locais, até voltar ao Continente para, imagine-se, dirigir o Presídio Militar de Santarém...
Gosto de Castelo de Vide pelas razões apontadas, e também pela índole dos seus habitantes. É gente que passa o tempo a inventar partidas e brincadeiras, de uma forma que nunca vi noutras paragens. Por exemplo, quando Carolino Tapadejo dirigia a Câmara, participou numa "história" que levou alguns crédulos da terra a acreditar que, para se casarem, tinham de ir à Autarquia, receber uma "guia de marcha" assinada pelo Presidente e com carimbo da Câmara, rezando que " seguia o mancebo fulano de tal para a Igreja de Castelo de Vide, no dia tantos de tal, a fim de que se celebre casamento com fulana de tal... etc." - mais ou menos nestes termos. E, noutra ocasião, convenceram uma figura da terra, conhecida pelo seu conservadorismo e aparente exigência de rigores morais de que ia abrir, em Castelo de Vide, uma boite com dançarinas de strip tease, com inauguração a horas escusas... por volta da meia-noite, ou coisa assim. Depois de "adubarem" o indivíduo com informações muito sigilosas sobre as características do estabelecimento, foram pôr-se à espreita, na noite da suposta abertura, para apanhar o fabiano a rondar o local, à espera de entrar no "antro do pecado"... ao arrepio das suas propaladas virtudes de cidadão exemplar.Outra situação teve a ver com o facto de, em Castelo de Vide, existirem associações de indivíduos com o mesmo nome: os Josés, os Manueis, etc. Mas, como em boa terra alentejana, ficavam de fora uma data de cidadãos, com nomes estranhos - como Carolino Tapadejo. Então formaram a Associação dos nomes estranhos, que tinha um dia de comemorações, integrando um cortejo, com estandarte próprio, que se deslocava ao cemitério, em homenagem aos sócios falecidos, e um almoço, com discursos em louvor dos marginalizados pela estranheza do nome...
Enfim, qualidade de vida..

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

CLÃ em Ponta Delgada

O grupo CLÃ, e a música do Norte, hoje,
no Campo de S. Francisco em Ponta Delgada
A vocalista: Manuela Azevedo
PROBLEMA DE EXPRESSÃO
*****************************
Só p'ra dizer que te amo,
Nem sempre encontro o melhor termo,
Nem sempre escolho o melhor modo.
*****
Devia ser como no cinema,
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém.
*****
O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.
*****
Só p'ra dizer que te amo
Não sei porquê este embaraço
Que mais parece que só te estimo.
*****
E até nos momentos em que digo que não quero
E o que sinto por ti são coisas confusas
E até parece que estou a mentir,
As palavras custam a sair,
Não digo o que estou a sentir,
Digo o contrário do que estou a sentir.
*****
O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.
*****
E é tão difícil dizer amor,
É bem melhor dizê-lo a cantar.
Por isso esta noite, fiz esta canção,
Para resolver o meu problema de expressão,
Ficar mais perto, bem mais de perto.
Ficar mais perto, bem mais de perto.

*****

Letra: Carlos Tê

Música: Hélder Gonçalves

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Piquei-me nas silvas dos Açores...

Luas do Pico
**************
Subitamente, olhei para ti
Como quem olha para quem nunca viu
Como se fosse um luzeiro, eu descobri
Que os ventos que cruzam o Canal passam por ti
********
Subitamente, nasci em ti
Na transparência da dor e do frio
Como se fosse um atalho que percorri
Piquei-me nas silvas do Pico, fiquei por aqui
********
Juntos traçámos as nossas rotas impossíveis de maresia
Cruzámos, velhos loucos, oceanos em veleiros de agonia
Guardámos nossas dores nos rumores que os ventos então traziam
Cravámos uma âncora de esperança no porto da nossa ilha
********
Subitamente, mais perto de ti
Soltei amarras do velho navio
Atravessei o Canal e então percebi
Que as luas que nascem no Pico são todas para ti
********
Juntos traçámos as nossas rotas impossíveis de maresia
Cruzámos, velhos loucos, oceanos em veleiros de agonia
Guardámos nossas dores nos rumores que os ventos então traziam
Cravámos uma âncora de esperança no porto da nossa ilha
******
Letra e música: Luís Alberto Bettencourt
Intérprete: Piedade Rego Costa
Álbum: 7 Anos de Música

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

ADEGA LUSITÂNIA

A Adega Lusitânia, em Angra do Heroísmo, conheci-a nos anos 60, quando era ainda uma tasca, onde se comia bom peixe porque o dono era pescador… Chão de terra, espaço escuro e um bocado "encardido", não tinha nada a ver com o que é hoje, funcionando num tempo em que a cidade só tinha praticamente um restaurante, o "Beira Mar", junto ao Pátio da Alfândega.
Na Lusitânia, havia um grupo que mantinha uma "tradição" muito própria: por altura da tourada à corda do Alto das Covas, metiam-se na tasca, vendo os touros e o pessoal a correr de um lado para o outro. Quando percebiam que um dos bichos já estava um bocado farto de tanta correria, faziam-lhe uma pega, e metiam o focinho do animal na entrada da taberna… onde outros, já preparados, enfiavam um barrilete de vinho pela boca do bicho abaixo. E depois ficavam a apreciar o percurso do animal, tornado companheiro de Baco, a trocar as patas pelo caminho fora… Coisas que hoje seriam censuráveis… mas que, na altura, eram apreciadas pelo pessoal, da terra ou forasteiros.
João Coelho