terça-feira, 28 de outubro de 2008

Espreitar a escrita de... JUDITE JORGE

Judite Jorge

Nova Iorque, 12 de Setembro de 1947

Querida mãe e restante família,

Oxalá que esta vos vá encontrar de saúde e na forma do costume. Pensar que estou a meio caminho daí e que ainda não é desta que vos vejo! Tinha muita vontade de ir aí, até disse ao Luís, Pois se a gente vai atravessar a América toda, vai mais adiante, vamos aos Açores para eu ver os meus e para tu os conheceres, mas ele respondeu, Sabes que a gente deu agora um balanço grande à vida com a compra da casa e as passagens de avião são caras, a gente para ir de barco é mais o tempo que passa no mar do que em terra com eles, a gente há-de ir para o ano. Ele tinha gosto em vir aqui ao Este ver os sobrinhos, que já não via há muitos anos, e eu tinha gosto em ir ter com vocês, que ainda há mais tempo que não vos vejo, mas não podíamos ter ambos os gostos de uma vez, estamos então aqui agora e, para o ano, por esta altura, havemos de estar aí, assim Deus permita.
Mando estas fotografias que tirámos na viagem. Louvado seja Deus, eu gostava que vocês vissem como esta América é grande e variada. Andámos mais de quatro mil quilómetros para chegar aqui e ainda fomos ver Niagara Falls, são umas quedas de água muito lindas. Amanhã começamos a viagem para trás, que quando chegarmos ainda vamos fazer a mudança de São Francisco para a casa de São José, tem de ser antes de eu voltar ao trabalho.
Muitas saudades para todos
desta que nunca se esquece de vocês
e a todos abraça
Maria
- Foi por isso que não casaste com ele? Por ser protestante? – perguntou o homem.
Alto e magro, mas bem constituído, rosto recortado e forte em tez escura, olhos grandes, castanhos e pestanudos, cabelos ondulados a denunciar duas pequenas entradas, não mais do que uma ou outra ruga à volta dos olhos, ninguém diria que ia fazer cinquenta anos.
- Foi uma razão de peso – respondeu a mulher.
Não fosse o cabelo branco e não pareceria mais velha do que ele. De estatura baixa, magra a ponto de parecer frágil, tinha rosto redondo, nariz fino, olhos doces e perspicazes. O cabelo, curto e penteado para trás, deixava-lhe à vista a testa generosa.
- Mas casaste comigo e sou ortodoxo! – retorquiu, admirado.
- Pensando bem, não posso dizer que tenha sido só pela questão da religião que não casei com ele. Quando isso se passou, eu estava acabando de chegar à América, era muito nova, não me quis prender logo. Talvez não me sentisse preparada para dar aquele passo. Contigo foi diferente, a situação era outra. Estava nesta terra há muito tempo, tinha a minha vida organizada, mas, longe dos meus e sem nunca me ter juntado com ninguém, sentia-me sozinha. Tu apareceste, soubeste cativar-me… Só te pus uma condição, a do casamento misto, e tu concordaste logo, prometendo que cada um respeitava a vida religiosa do outro.
- Assim tem sido. Por causa disso, até celebramos duas vezes o Natal e a Páscoa… Diz lá, Maria, alguma vez nos zangámos por causa da religião?
- Eu parece-me mesmo que a gente nunca se zangou.
- Zanga, zanga não foi, mas antes da viagem tivemos aquela diferença de opiniões quanto à casa.
- Eu preferia continuar em São Francisco, mas tu quiseste comprar em São José e lá acabei por te fazer a vontade. Embora, a meu ver, já que não tínhamos o dinheiro todo e foi preciso o empréstimo, pudéssemos ter pedido mais algum e…
- Mas os preços – atalhou ele, acentuando a palavra – não se comparavam.
- Pois tu lá sabes, é que trataste disso, e o que está feito, está feito, não se fala mais no assunto. Mas estou tão habituada a São Francisco que me custa sair de lá…
- Não vais chegar a sentir saudades, é em São Francisco que trabalhas, acabas por ir lá quase todos os dias. Eu é que não… Vendeu-se a barbearia, vou ficar desocupado… Não sei o que é que hei-de fazer para não me sentir inútil.
- Não te preocupes, hás-de entreter-te a tratar do jardim. Quanto à barbearia, não te arrependas, está vendida e o dinheiro que recebeste e mandaste aos teus lá na Grécia há-de ser de bom proveito.
- É como dizes, toda a ajuda que recebam é bem aplicada. Coitados, aquela guerra parece que nunca mais tem fim, estão a passar muito mal. Não estás arrependida de não teres querido parte do dinheiro da venda e de me teres dito que mandasse tudo para a Grécia?
- Não, Luís, não tenho de que me arrependa. Aquela barbearia já era tua antes de eu te conhecer. E, além disso, os meus também passam dificuldades lá no nosso Pico, mas felizmente vivem em paz, vão conseguindo tirar uma coisinha da terra, batatas, inhames, milho, trigo, o principal, e ao mar vão buscar peixe que o há com fartura. Tenho gosto em mandar-lhes algum dinheiro sempre que posso, e sabes que mando duzentos dólares pelo Natal, mas os teus estão em pior situação, fazes bem em ajudá-los.
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Conversavam no apartamento de Susana, sobrinha dele, uma rapariga simpática e roliça, mãe de dois rapazes adolescentes e casada com um grego que Maria não chegou a conhecer por andar embarcado num navio de mercadorias. Era a véspera do regresso à Califórnia e tinham passado o dia a dar as últimas voltas. Primeiro, logo de manhã – Maria não passava que não assistisse à missa dos portugueses -, ele deixara-a à porta da igreja de Santo António. Não entrara, dissera-lhe que ia pôr no correio a carta dela para os Açores e uma, sua, para a Grécia. Apanhara-a uma hora mais tarde no mesmo sítio, trazendo uma surpresa: sanduíches e sumos com que lhe sugeria um piquenique no Central Park. Fascinados e sem pressa, tinham passeado pela luxuriante verdura do parque, comentando como era bom que uma cidade assim, cheia de vidro, cimento e ferro, usufruísse de um tal pulmão. Mais tarde, ao rever a pequena ilha, quase abafada à sombra da Estátua da Liberdade, recordara as suas primeiras horas em terras da América. Ali as passara, em Ellis Island, à espera que os serviços de emigração sentenciassem quem entrava e quem era mandado para trás.
Agora, sozinhos em casa, pois tanto Susana como os sobrinhos ainda estavam fora à hora que chegaram do passeio, não era tarde nem cedo para prepararem o regresso.
- Vou fazer a mala – disse Maria. – Que roupa queres que deixe fora para vestires amanhã?
- Pode ser as calças e a camisa bege – escolheu Luís e depois sentou-se, de mapa na mão, a traçar o itinerário de regresso. – Nova Iorque, Pennsylvania, Ohio, Indiana, Illinois, Iowa, Nebraska, Wyoming, Utah, Nevada, Califórnia… Vamos voltar a passar por estes estados todos…
- Pois sim! – concordou, entusiasmada.
Com ele irá onde for preciso, é o seu único homem, com ele casou há seis anos, com ele pela primeira vez tomou o gosto ao amor e à vida partilhada, com ele, sim, quer atravessar sem desfalecimentos as serras e os desertos que lhes caibam.
Judite Jorge, Afectos de Alma

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Baseado na história verídica de Maria Polley, este foi o primeiro romance de Judite Jorge. Nascida, em 1965, no lugar de Pontas Negras (Ilha do Pico), é jornalista, poetisa e recebeu vários prémios.

Vale a pena continuar a leitura deste romance, que aqui se inicia, numa publicação da Dom Quixote.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Na Serra do Açor

A Serra do Açor situa-se entre a Serra da Lousã e a Serra da Estrela e estende-se pelos concelhos de Arganil, Góis e Pampilhosa da Serra.
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Fraga da Pena, freguesia da Benfeita (Arganil)
Acabo de passar alguns dias no Piódão (Arganil), aproveitando para dar longos passeios pela Serra, e lavar a alma, no contacto com a Natureza. De vez em quando, a paisagem obrigava-me a lembrar as minhas ilhas queridas. Como se o próprio nome na Serra o não fizesse já!...
A semelhança acentou-se na Fraga da Pena, não só pela cascata em si, mas também por toda a área envolvente de vegetação luxuriante e húmida.
Enfim... uma espécie de viagem mental pelas ilhas... do lado de cá do Atlântico.

domingo, 12 de outubro de 2008

Mais vale tarde... Os 30 anos da morte de Brel

Jacques Brel
nascimento: Schaarbeek, Bélgica em 8 de Abril de 1929
morte: Bobigny, França em 9 de Outubro de 1978
Não consegui o vídeo, mas aqui fica a letra de Amsterdam e a homenagem ao grande Jacques Brel. Para os amigos deste blogue,
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AMSTERDAM
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Dans le port d’Amsterdam
Y a des marins qui chantent
Les rêves qui les hantent
Au large d’Amsterdam
Dans de port d’Amsterdam
Y a des marins qui dormant
Comme des oriflammes
Le long des berges mornes
Dans le port d’Amsterdam
Y a des marins qui meurent
Pleins de bière et de drames
Aux premières lueurs
Mais dans le port d’Amsterdam
Y a des marins qui naissent
Dans la chaleur épaisse
Des langueurs océanes
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Dans le port d’Amsterdam
Y a des marins qui mangent
Sur des nappes trop blanches
Des poisons ruisselants
Ils vous montrent des dents
A croquer la fortune
A décroiser la lune
A bouffer des haubans
Et ça sent la morue
Jusque dans le coeur des frites
Que leurs grosses mains invitent
A revenir en plus
Puis se lève en riant
Dans un bruit de tempête
Referment leur braguette
Et sortent en rotant
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Dans le port d’Amsterdam
Y a des marins qui dansent
En se frottant la panse
Sur la panse des femmes
Et ils tournent et ils dansent
Comme des soleils crachés
Dans le son déchire
D’un accordéon rance
Ils se tordent le cou
Pour mieux s’entendre rire
Jusqu’a ce que tout à coup
L’accordéon expire
Alors le geste grave
Alors le regard fier
Ils ramènent leur batave
Jusqu’en pleine lumière
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Dans le port d’Amsterdam
Y a des marins qui boivent
Et qui boivent et reboivent
Et qui reboivent encore
Ils boivent à la santé
Des putains d’Amsterdam
De Hambourg ou d’ailleurs
Enfin ils boivent aux dames
Qui leur donnent leur joli corps
Qui leur donnent leur vertu
Pour une pièce en or
Et quand ils ont bien bu
Se plantent le nez au ciel
Se mouchent dans les étoiles
Et ils pissent comme je pleure
Sur les femmes infidels
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Dans le port d’Amsterdam
Dans le port d’Amsterdam
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Aqui fica, também, a achega do João Coelho (comentário que fez no Luar de Janeiro, há tempos):
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Para quem, eventualmente, não saiba, Jacques Brel, amante da vela, saiu, em Julho de 74, de França para o Pacífico. Por problemas de saúde, aportou à Horta onde foi visto pelo Dr. Decq Mota, acabando assim por se detectar o cancro no pulmão que o mataria em 9 de Outubro de 1978 (há 30 anos, portanto) . O cantor está sepultado, por sua vontade, no cemitério de Atuona, na ilha de Hiva Oa (Marquesas), próximo da campa de Gauguin. Há algum tempo o navegador solitário açoriano Genuíno Madruga, que está a fazer a sua segunda volta ao Mundo no iate "Hemingway", deixou, no túmulo de Brel, uma placa de homenagem, em seu nome e no de José de Azevedo, do Café Sport (o Peter da Horta) que Brel frequentou. Em 1983, Fernando Tordo foi viver para o Faial durante algum tempo, conhecendo ali a família Decq Mota e, através dela, o orquestrador de Brel. Resultaram, deste contacto, dois discos de Tordo, "Anticiclone" e "A ilha do Canto".