segunda-feira, 29 de junho de 2009

A Casa de Antero em Vila do Conde

Casa de Vila do Conde onde viveu Anthero de Quental
Aqui as praias são amplas e belas, e por elas me passeio ou estendo ao sol com a voluptuosidade que só conhecem os poetas e os lagartos adoradores da luz.
Anthero de Quental

A Câmara de Vila do Conde está a recuperar e abrirá ao público brevemente a Casa onde, durante dez anos, viveu o poeta. O imóvel, que tinha sido alvo de uma intervenção que o descaracterizou, teve de ser demolido e reconstruído para se aproximar, o mais possível, ao que era no tempo de Anthero.

A casa reconstruída

O espaço não é grande, mas estão a ser criados espaços de exposição, um pequeno auditório e uma biblioteca a instalar na antiga torre, um dos locais mais atractivos da casa.
O acesso a essa torre, é feita através de uma escada, em espiral, que termina numa janela com vista para o núcleo antigo da cidade. A espiral tem a forma de estante e poderá representar, por exemplo, "a subida para o conhecimento", uma vez que ali ficarão aquartelados mais de 5000 livros. Existe a vontade de reunir, neste local, tudo o que diga respeito a Anthero e que se encontra disperso.
Dentro da casa, há um outro espaço que merece também ser realçado: o jardim. Antero de Quental conta, numa carta escrita a um amigo, que pretende libertar aquela zona da função de horta e transformá-la, colocando ali duas laranjeiras, um pessegueiro, plumas, um morangueiro e uma ramada. O jardim está a ser ordenado tal e qual esta descrição.
A casa situa-se no Largo com o nome do poeta (antiga Praça Velha), próximo da Igreja Matriz.
Fica prometida nova visita para quando a Casa de Anthero de Quental abrir ao público.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O homem dos 7 instrumentos

Eu nunca estivera antes na casa do padre, compreende o senhor? Não tinha vida nem estômago para isso. Era, nesse tempo, um homem de mil ofícios e caminhos. O mundo sobrevivia, sabe como e porquê? Ora, porque eu o desratizava. Subindo e descendo, por ladeiras e estradas, essas aldeias todas do Nordeste, tocava o meu realejo à entrada da rua principal, vinham logo bandos de homens e mulheres a correr ao encontro dos meus serviços. Via-se-lhes nos olhos as vidas carregadas de pobreza e de uma tristeza sem remédio. Ou tinham tulhas cheias dessas pragas de murganhos que eu devia exterminar, ou traziam facas e tesouras e alfaias agrícolas a afiar à lima, ao esmeril, até à lixa grossa; ou então apresentavam-me guarda-chuvas com varetas e molas partidas, e outras ferramentas a precisarem de um conserto destas minhas mãos de mecânico de tudo e mais alguma coisa. Amolava enxós, serras, serrotes, ferros de arado, foices de ceifar trigo ou roçar silvas, o inferno em peso a passar-me pelos dedos. As pessoas pediam-me que lhes fizesse recados e chamadas telefónicas intercontinentais, que lhes levasse cartas para o correio e desse voltas e voltinhas por elas na Vila, à cata de papéis e encomendas, em diligências e estúpidas demandas junto da câmara municipal e do notário. Pagavam-me por isso o que entendiam ou bem podiam. Mas nunca me faltou trabalho, porque a verdade é que não havia em todo o concelho do Nordeste um desratizador como eu. Armava ratoeiras em tudo quanto fosse sítio de ratos: arribanas, cafuões de milho, armazéns de frutas, sótãos onde se vazavam o trigo, a fava, a batata-doce e a comida de Inverno para o gado. As casas ficavam presas e reféns das minhas armadilhas, tal qual o peixe miúdo numa malha entre rochas ou os pássaros nas redes que eu lançava entre o canavial – enquanto ia amolando tesouras de costura, limando facas de cozinha ou rachando lenha para o lume. Depois ia ver as minhas ratoeiras. Os bichos agonizavam às centenas, espichados pelas duras molas desses meus engenhos, dando à cauda e às patas no ar, os olhos alucinados e as línguas de fora. Abria-lhes então uma boa cova no quintal, ajudava-os a morrer por misericórdia e enterrava-os às pilhas e mais pilhas, para que o mundo ficasse limpo e salvo de semelhantes pragas. À boca de Outubro e de Novembro, consoante o tempo se anunciasse para a próxima estação, tornava-me carvoeiro. Trabalhava numa furna inventada por mim, espécie de forno abafado, com controlo de fumos e calores, onde a lenha ardia da noite para o dia por sua conta e risco, até o fogo se extinguir por si e as achas se converterem em grandes troços de carvão que eu vendia a peso ou a saco para o tempo frio. Já por aqui se vê, senhor: com uma vida destas, como ia eu ter tempo e paciência para padres e missas? Agora! Razão por que, como lhe disse, nunca tinha estado antes naquela casa.
João de Melo, A Divina Miséria

domingo, 21 de junho de 2009

Ainda a chegada de Genuíno Madruga ao Pico

Fotos gentilmente cedidas
por Margarida Madruga
A Ilha...
A espera...
A alegria da chegada
Os familiares, os amigos, os abraços...
A televisão e a festa

sábado, 6 de junho de 2009

Genuíno Madruga à hora da chegada

Genuíno Madruga: o navegador do nosso orgulho

Que bom voltar a sentir o cheiro destas ilhas!...
Depois de ter percorrido cerca de 34 mil milhas, em 21 meses, na sua segunda volta ao Mundo, o navegador solitário Genuíno Madruga e o seu iate Hemingway chegaram por volta das 14 horas às Lajes do Pico.
Genuíno, meu rico primo Genuíno
*******************************************
Quase na curva da estrada, ali no PALMO do GATO, entre as duas companhias, a de CIMA e a de BAIXO, isto é a meio da freguesia de S. JOÃO, num dia de inverno, 9 de Dezembro de 1950, ano Mariano, nasce este meu primo que agora vos apresento.Genuíno é o segundo filho, o primeiro do sexo masculino, de Maria da Conceição Goulart Madruga que casou aos 17 anos com Alexandre do Amaral Madruga, irmão de meu Pai.
A nossa avó paterna morreu de parto do 8º filho e dividiram seus filhos entre os parentes de S. João e das Bandeiras. Foi um castigo para aqueles meninos, que cresceram e se formaram a partir de todas as dores e saudades que a Vida lhes enviou. Foram forjados com uma têmpera de aço!
Tio Alexandre e meu Pai eram... tão próximos -13 meses de diferença de idades!!! (era vê-los já idosos ao lado um do outro fazendo coisas em conjunto e não falavam. Não precisavam de falar, tão unidos eles eram). Casaram no mesmo ano de 1943.
...e a vida deu as voltas que tinha de dar...
Genuíno era um menino rebitez. Louro, magrito e rijo, cheio de certezas, tão engraçado que ele era! E levava sempre a sua avante. Era como ele queria. Mas ele era esperto, muito esperto: sabia sempre o que queria e como queria. Nunca exigiu impossíveis. Tinha a noção exacta do que exigia. Deixava-nos andar no seu triciclo em troca sempre de algo. Se não houvesse troca que lhe agradasse, de certeza não emprestaria o seu triciclo.
...e isto com 5 anos de idade!!!
Desde cedo se evidenciaram nele as competências para o arrojo e aventura calculada. O medo nunca se gerou naquela cabeça de rapaz do Pico, que acima de tudo tinha que experimentar, para tirar conclusões. Foi assim que, numa das suas experiências, rebentou uma garrafa de gás... que não teve conclusões desastrosas, sabe-se lá porquê!
Porque era preciso estudar (!), dei-lhe explicações de Geometria Descritiva. Tinha um talento especial para as noções da geometria no espaço.
Apesar de toda a sua capacidade e inteligência, num dia de primavera de 1969, Genuíno diz-me: “Margarida, não vale a pena dares-me mais explicações. Vou desistir de estudar. VOU DEDICAR-ME À PESCA!!!”.
Acabara de fazer 18 anos!
Na sua primeira viagem à volta do mundo, Genuíno foi à procura de si mesmo, dos seus desafios, das suas capacidades que ele sempre quer ilimitadas, porque não há limites para os seus próprios desafios e também à descoberta de tantos e tantas coisas que o mar seu companheiro lhe foi presenteando.
Nesta segunda viagem ele quis levar as nossas ilhas em peregrinação, nesta circum-navegação, levando já outros compromissos a que ele se propôs. Como se ele fosse em procissão levando o “Santo Graal”, apesar de só, nunca deixou de cumprir o paradigma do sonho de Portugal: cumprir o Mar, cumprir Portugal, “dar novos mundos ao mundo”, cumprir o V IMPÉRIO que Fernando Pessoa sonhou e apregoou como o grande FADO, como o DESTINO SAGRADO e extraordinário deste nosso PORTUGAL. Genuíno foi cumprir o grande sonho de qualquer Português, que se revê nesta façanha. E Genuíno cumpriu.
Como qualquer HOMEM de BRAVURA, quando as coisas não correm de feição é que se percebe a sua CORAGEM, TÊMPERA, ESTOICISMO e RENÚNCIA a facilidades. Ele enfrenta a adversidade com uma TENACIDADE e DIGNIDADE próprias apenas de GENTE ILUMINADA, de gente de “antes quebrar que torcer”. Não é fácil para ele esta adversidade quase no fim da jornada, quando já sentia “areias de Portugal”... E não cumprir uma promessa (chegar pelo “Espírito Santo”) é uma desolação. A PALAVRA é para cumprir, doa a quem doer. Mas ele não se resignou, continua batalhando. Ele quer chegar, ele tem que chegar! Ele é naturalmente um sobrevivente de todas as tempestades que a vida lhe enviou. Ele é da estirpe dos heróis!
Este é que é o meu rico primo Genuíno, neto de meu Avô.
Margarida de Bem Madruga Horta, Maio de 2009

terça-feira, 2 de junho de 2009

A D. Otília

D. Otília vivia na estratosfera da Arte, sempre alheada das cruéis realidades que a circundavam. A vizinhança não a entendia. Jamais podia entendê-la. D. Otília conhecia meio mundo e falava com conhecimento bem documentado de museus, teatros e óperas das principais capitais europeias. O pai tinha sido rico e a filha, embora marcada com o estigma da ilegitimidade, acompanhou-o em inúmeras viagens e prolongadas estadas no estrangeiro. Frequentou meios de requinte social e exigente etiqueta, assim como os melhores colégios e mestres de música.
O meu avô apreciava muito receber D. Otília no terno de sala ao ar livre e até lhe perdoou o buraco que fez com a brasa do cigarro no assento do sofá. A pianista fumava, sem parar, um tabaco violento e barato que fazia tossir quem andasse por perto. Era a única mulher da aldeia que fumava cigarros de homem. D. Floriberta só consumia marcas caras e aromáticas. Entenderam as janeleiras que se ambas fumavam mereciam igualmente suspeitas das mesmas irregularidades morais. “Umas meretrizes”, gritava D. Beatriz mouca supondo que falava baixo, em confidência para a janela ao lado. A pianista, lá no planeta mítico que habitava, jamais se deu conta da crueldade que dominava o mundo das vizinhas.
ilustração de Luís França
Quando D. Otília decidia passar serões ao ar livre no sofá do meu avô, o velho Manuel Mentiroso deliciava-se com as vibrantes descrições de viagens e de acontecimentos que incluíam curiosas personalidades, assim como gente ilustre que ela conhecera durante os agitados tempos que separaram as duas guerras mundiais.
A pianista da nossa aldeia ora passava longos serões ao ar livre no sofá do meu avô, que se prolongavam até de madrugada, ora andava deprimida, com um olhar vago que não focava nada nem via ninguém. Passava temporadas de solidão como se vivesse numa ilha deserta no meio da aldeia. Tudo quanto o pai lhe tinha deixado em herança guardada no sigilo de bancos londrinos, foi transformado em material de guerra quando o governo britânico confiscou as reservas bancárias para suportar o combate final à fúria de Hitler. Sobrou-lhe apenas a humilde casa da mãe, o relógio e os anéis do pai! Empenhava ou vendia aos poucos, o pouco que tinha. As lições de piano não a sustentavam porque tinha sempre muito poucos alunos. Não tolerava os menos dotados e abominava que se tocasse sem alma, sem talento. As meninas de sensibilidade menos apurada eram postas na rua aos gritos de “vá para casa remendar as peúgas”, porque entendia que “a música não é para cabeças ocas nem para sentimentos empedernidos como calhaus”. Muito poucos alunos resistiam aos vendavais do temperamento da D. Otília. Por vezes, até aqueles que ela considerava talentosos desapareciam em pânico. Depois, sobravam as carências, a fome rondava, entrava e instalava-se na casa dela. Porém, nem nas crises mais prolongadas a pianista aceitava ajuda de quem quer que fosse. Podia não ter mais nada para além da dignidade, mas dela não abdicava. Transformava em esmola para os pedintes qualquer oferta que lhe fosse dada, mesmo que o retrato da fome lhe viesse estampado na cara. Se era convidada para comer em casa de vizinhos, exibia uma bizarra cerimónia, servindo-se de quantidades mínimas das quais ainda deixava sobras. Tinha um olhar altivo, distante, que nos reduzia à sensação de pertencermos a uma escala menor.
Havia na atmosfera da aldeia como que uma compacta força suspensa, algo de estranho que nos roçava pela alma, apertava na garganta e eriçava a pele, quando a pianista abria a madrugada através dos ascendentes acordes de um Nocturno do “seu” Chopin. Para a ouvir clandestino, eu saía da cama e escondia-me no vão da porta ao lado da casa dela. Julguei que a minha presença tinha sido pressentida ou descoberta quando, mais tarde, tive a sensação de que me eram dedicadas algumas das maravilhosas sonatas românticas a que a artista se entregava, em êxtase. Apaixonei-me pela música. Andava sempre dentro do raio de acção sonora do piano da vizinha. Escutava as lições, suportava o martelar dos exercícios de principiantes e temia as explosões de cólera contra meninas lavadas em lágrimas, que eram expulsas sem piedade, para o “olho da rua”. Porém, nada demoveu as intenções que entretanto me tinham nascido cá dentro e acabei por dar comigo a suplicar, “ó mãe, peça à vizinha Otília para me ensinar a tocar piano”. Como o meu pai discordou com enorme arrogância, porque “o que ele precisa é trabalhar”, logo a minha mãe entendeu contrariá-lo, por rotina. Acedeu ao meu pedido com a melhor prontidão e foi falar à pianista. Ficou apalavrado o dia e a hora da primeira lição.
Vivi ansioso a espera pela oportunidade de ter a sensação de me sentar ao piano. Qualquer um vivia sugestionado por imagens das fitas de cinema como aquelas em que o galã, no mais premente momento do clímax sentimental, abandonava a actriz, cuja esbelta cintura tinha entre mãos, para se sentar ao piano e dedicar-lhe uma serenata. […]
A professora de piano não me deixou sentar frente ao teclado, no banquinho mecânico que gemia quando se rodavam os dois manípulos que lhe regulavam a altura. Eu tinha sonhado atribuir ao momento em que me sentasse pela primeira vez ao piano o significado dum decisivo passo para a consagração. Sentou-se ela e manteve-me a uma certa distância. Ensinou-me as notas “dó, ré, mi” e… por aí adiante. Tive de as cantar avulsas à medida que ela as fazia sair vibrantes, pelo piano fora. Eu não conseguia evitar a troca de “dós” com “fás” e o desapontamento estava escrito na cara da vizinha pianista que sentenciou, “musicalmente disléxico!” Aproximei-me um pouco para saber o que isso queria dizer e apoiei a mão na tampa do piano de meia cauda. D. Otília não queria acreditar no desaforo. As sobrancelhas pintadas a azul subiram-lhe de espanto, até ao cimo da altiva testa franzida com rugas de tempestade. Levantou-se e gritou, possessa, “tira já as mãos de cima do meu marido”. Fiquei petrificado sem ver nenhum marido, até reparar que estava com a mão colada naquele monstro preto que se arreganhava para rir de mim, exibindo a enorme dentadura branca voltada para a possessiva esposa. Corri escada abaixo e corri rua fora cheio de vergonha com o escândalo que a gritaria ia provocar na aldeia. Foi uma zanga ainda pior do que as zangas rotineiras que D. Otília tinha contra meninas destituídas de talento. Era evidente que no seguimento deste fiasco público, eu passava a ter o rótulo de ser o maior insucesso pedagógico da pianista da aldeia.
Tomaz Borba Vieira, Herdar Estrelas