quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Brumolândia

De muito longe vinha o interesse dos meios naturalistas por essas paragens longínquas e esplêndidas de Brumolândia, onde conchários eternos vesicavam o ar com revérberos, e altas plantas exóticas se encabeçavam de folhas, múrmures a ventos brandos. Fora um conde piemontês, culto e marinheiro, que, avesso a coisas de corte e a castelãs pragmáticas, se botara de alma ao estudo do ignorado país, suas riquezas e variedades, pondo sinal de carinho no que tocava a marés e leis de ventos, e atufando os museus de Londres com exemplares magníficos da fauna. Daí em diante, flotilhas de curiosos e de sábios aproavam à Brumolândia, desembarcavam com binóculos a tiracolo, e nas latas de herbanário caíam avencas raras, que depois, preparadas, eram vistas aos microscópios. Um francês do Instituto escrevera uma monografia sobre seus búzios, outro homem calvo diferenciara certa estrutura de cabozes, e mesmo alguém descobriu, num quieto porto ao norte, entre um paul verdoso, uma espécie de anuros sarapintados de vermelho. E logo os geólogos mais afamados do mundo acorriam, pois Brumolândia brotara duma válvula da terra, pouco depois do Dilúvio, com basto tiroteio de misteriosas lavas.
Ilha Terceira.Ilhéu das Cabras

Assim a pobre terra ia ganhando nomeada no assopro da fama, pois se quedara escondida entre os roçagos do Atlântico, fazendo uma vida simples de pegureiros e de manadas. Aventureiros hispânicos do Quinquecénio, por uma manhã de Agosto, haviam posto ferro na primeira enseada da terra, região pulverulenta de barreiras aonde depois se faziam enormes vasos toscos. Mas a gleba anunciava pouco, nem vivalma, por lá, resfolegava ou sofria, e só rapaces muito negros enchiam o ar de crocitos, como matracas vigiando uma triste vinha vindimada. Logo o Capitão se fez de vela à Metrópole, a trazer tão desconsolada nova.

- Ninguém, meu Senhor – dizia para o Almirante da Renascença. – Nem planta humana calcou jamais tão fero chão! E se me é dado vos tornar parecer sobre destino a que voteis o senhorio que vos trago, já vos digo que mais monta deixá-lo a ladrão de braga ao pé, do que a homem bom ou fidalgo de couto e honra em vosso termo.

O Almirante achou bem e cogitou por largos dias; e o Capitão, que tinha assento num castelo transtagano, foi-se a repousar. Tempos, porém, volvidos, o mareante mudou de pensar, tomando para si uma porção da terra, e ruivos colonos de Flandres partiram a haver o resto, em caravelas tão fartas de mantimento e sustância, que eram paródias vivas da Arca do bom borracho Noé…

Desbravados os matagais e escaboucadas as grandes calvas de pedra, onde bacelos e tojais punham a ilusão dum chinó, progrediu a colónia e erigiu capelas que nas tardes bíblicas, de um fumozinho leve, alarmavam a redondeza com repiques, nas primeiras bodas, ao olor das flores brancas… Foram cortados azevinhais milenários, com raízes no coração da terra e francas aos pés do Senhor; a urze tintureira deu cor a todas as véstias; e o pau branco, mais o cedro de bom cheiro, émulo do do Líbano, estenderam sobre os colmos: pernas de asna, tirantes e vergas mestras.

Brumolândia era, enfim, terra cristã e habitada. Mas isolada, só lentamente Brumolândia aforou civilização. Às vezes, dela faziam refúgio os príncipes pretendentes e os reis esbulhados do trono, aportando com vassalos fiéis e chorosos em armadas foragidas, que, tomado o apetecido refresco de almas e de corpos, de novo se faziam ao mar em busca nova de empresas. Não raro, mesmo, o sangue das batalhas escorria em seu dorso. Causas perdidas na nação que a anexara eram lá ganhas e salvadas, pareciam tomar rijeza das próprias lavas já frias, e, com um casulo de meses, rasgavam em borboletas de velas nos periantos das águas – já larvas, comendo a horta política da Metrópole.

De uma vez, até, que castelhanos a tentaram – escalões de infantaria em apresto de desembarque – contava o cronicon de como o indígena resistira, com pontas de chifre à frente de toiros reais, salvo seja…

Batalha da Salga [25 de Julho de 1581]
No intervalo destas convulsões políticas de transplante, voltava a terra a ensimesmar-se na vida rural, pastoril e piscatória. E era um gosto ver como dobavam os anos na dobadoira das montanhas, pacíficos e felizes, e as efemérides dos letrados só marcavam baptizos de vilão e casórios de fidalguinhos. Seria preciso remontar a tempo quão longe, para topar tão doce vida, gaudente de si mesma, feita dos pequenos nadas do campo e dos episódios rudes da faina e dos pesqueiros, sob a bondade de Neptuno – tridentes de estrelas, pela noite, alumiando… Cada lar se bastava em eternidades de núpcia, procriando, cavando a terra com o suor da cara, indo à tarde enfeixar a lenha da fornada. Vida sem assomo ou danamento, corria na imitação do mar como um véu garço sem nódoa. Só raro em raro, quando a invernia, sobretudo, sovava mais o litoral, em casais ribeirinhos ia a míngua do pão ou o caldo da panela não tinha olhas boiando. Mas logo a vizinhança supria a triste penúria das companhas, e nem a fome era mais do que uma seara de Deus, farta e luminosa, para a bondade segar a salvação das almas. Ah! Vinham às vezes os piratas…
Se a ressaca batia as rochas, num fervilhante espumedo, como espojos do mar chegavam os bergantins e os palhabotes da moirama, corsários tunísios laminavam os alfanges, e uma semente de morte, como pragana, destroçava então dois vilórios ou três. Contudo, a plebe era a que menos sofria, pois os infiéis acossavam de preferência os pequenos castros de defesa, onde uma aristocracia comedida e benfazeja medrava em pequenos feudos, casando os morgados e dando palha às éguas.
Em Caprária, cidadela do sul erguida ao pé dum monte, instalara-se o governo geral de Brumolândia, que os grão-senhores exerciam, com seus baús de dobrões e pingues tulhas de grão. Por vezo idos da Metrópole, embarcavam num cais de honra, escuso, aguardados da fidalguia, e em pratos de cobre luzindo tomavam as chaves do Castelo, enormes como fueiros. Depois, nas mornas tardes de delíquio, o sol tombando além, alcaidessas estadeavam caudas ricas nas muralhas, e as loiras filhas gentis vinham às barbacãs, pela boca da noite em prece, ouvir as teorbas doridas e as frases quentes de amor.
Quando chegava o pirata, espadaúdo, farejava estas presas como rafeiro entre coelhos. Organizado o assolo, tomavam a quieta esplanada da fortaleza, e violando o voto claustral da triste erva que a enchia, trepavam como periquitos aos muralhões calados, sacavam da fria lâmina recurva, ensopando as palmas das mãos no sangue inocente das guardas. Mortes de varão acabadas, as pilhagens do celeiro levadas ao fim malino, iam às cavalariças onde o gado ruminava, e nos alazões galopantes, sobre coxinilhos de lã, partiam, trupe-trupe, com as pálidas castelãs definhadas de medo ou de enleio…
Havendo tempo, os da terra formavam a represália. Era quando, ao cabriolar dos sinos nas torres todas, as ruas se emagotavam, cabeças esbaforidas de donas despontavam nas janelas, e, à uma, velhos e novos arrancavam, chuço em punho, num furor torvo que vinha vagamente dos Cruzados. Mas em regra o corsário era mais vivo de olho, e nos batéis aprontados de remos, três em voga, recolhia ao navio com riquezas e virgens.
Então negociavam a liberdade das pessoas, anchos e prosapiosos, quando não vinham eles ao cativeiro cristão para sempre, a mão direita cruel na estola do sétimo sacramento.
Vitorino Nemésio, in Paço do Milhafre

5 comentários:

Graça Sampaio disse...

Vitorino Nemésio, meu querido professor de Cultura Portuguesa, só ele para falar assim da sua amada terra.
Que bonito texto!

Elisabete disse...

É uma visão bem-humorada da História dos Açores. Mas é realmente um texto fabuloso.
Sorte a sua por ter sido aluna deste açoriano único!

joão coelho disse...

Viva Elisabete!

Não dou noticias há muito, mas visito sempre estas ilhas encantadas. Está a apetecer-me voltar. Fico à espera de um pre(texto)teu..
Abraço

João Coelho

Elisabete disse...

Olá, João!
Bem-vindo!
Ainda um destes dias pensei: O que será feito do João Coelho? Mas não sabia como estabelecer contacto.
Está tudo bem?
Fico à espera dessas maravilhosas "memórias".

Elisabete disse...

Aqui fica, a pedido do próprio, o comentário do nosso amigo Daniel de Sá:

Eu, tal como o João Coelho, tenho saído da lura de vez em quando, mas não tenho deixado recado.
Fica agora, embora atrasado em relação à data da publicação deste texto tão bem humorado, como já foi dito, do Nemésio, que até transformou em toiros reais as mansas vacas que, assustadas por tiros de arcabuzes e outras artimanhas, se derramaram pela baía da Salga, fazendo fugir para o mar os castelhanos apavorados com tão imprevisto ataque. Mais tarde, na baía das Mós, os de terra quiseram repetir a façanha, ou que a repetissem as vacas, mas os castelhanos, que tinham aprendido a lição, formaram alas, deixando o gado assustado passar pelo meio, e depois atiraram-se sem piedade aos pobres defensores.
Um abraço.
Daniel