quarta-feira, 25 de abril de 2012

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Senhor Santo Cristo dos Milagres


Recebi do meu muito querido amigo Daniel de Sá, um texto cujo objectivo é desfazer alguns erros que vão sendo aceites, ao longo do tempo, por deficiente pesquisa/interpretação dos factos. Eu própria repeti a história tradicional, em post anterior, e vou agora retificá-la. Os meus agradecimentos a Daniel de Sá.

Sobre o Senhor Santo Cristo
(A propósito de uma notícia publicada na imprensa)

Com o respeito devido a quem terá dado as informações constantes em notícia deste jornal (08/02/2012), sobre as próximas festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, tento, uma vez mais, chamar a atenção para os erros óbvios que a história tradicional de tão sagrada devoção contém.
Em tal notícia se repete uma evidente impossibilidade, a de que a primeira procissão tenha sido em 1700. Desse cortejo, quase espontâneo, sabe-se que foi a onze de Abril e em dia de trabalho. E, naquele ano de 1700, o dia onze de Abril foi Domingo de Páscoa.
Também é dito que a procissão se repete há mais de três séculos, sempre no quinto Domingo depois da Páscoa. No entanto, a primeira terá sido, provavelmente, na 6ª-feira que se seguiu ao Domingo de Pascoela de 1698, e a segunda no Sábado, 16 de Dezembro (e não 17, como diz o padre José Clemente no livro sobre a vida de Madre Teresa) de 1713, para implorar a Deus o fim de uma crise sísmica em São Miguel. Da terceira e das seguintes nada se sabe. Nem o ano nem o dia. Mas não terão acontecido pelo menos na primeira metade do século XVIII.
A lenda da origem da belíssima imagem continua também a sobrepor-se à razão mais elementar. A versão tradicional é a de haver sido oferta do Papa Paulo III, feita a duas jovens que teriam ido a Roma pedir a bula para fundação do mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, em Vale de Cabaços. Eis, sintetizadas, as razões que nos dão a certeza de que tal viagem não se verificou:
Era impensável, naquele tempo, quase impossível, a ida de duas jovens dos Açores a Roma;
Gaspar Frutuoso, que conta em pormenor a criação do convento, não alude a qualquer viagem ao Vaticano, seja delas ou de alguém por elas;
O convento foi fundado durante um terrível período de peste em São Miguel, desgraça que se seguiu à subversão de Vila Franca, tendo terminado apenas em 1530, tempo durante o qual a ilha esteve isolada, só se verificando para o exterior as viagens absolutamente essenciais;
Finalmente, e razão que bastaria para negar a origem atribuída a tão sagrada imagem, o Papa Paulo III foi eleito em 13 de Outubro de 1534, depois, portanto, de construído o convento.

P.S. – É estranho que, sendo os factos que negam a história tradicional tão evidentes, a lenda se tenha mantido até agora, e sabe Deus até quando. Por um lado, têm o muito frágil suporte do livro do padre José Clemente, um bem intencionado que parece que nunca esteve sequer em São Miguel, ilha a respeito da qual estava convencido de que nevava. Por outro lado, há a autoridade muito respeitável de Urbano de Mendonça Dias. Mas o ilustre investigador a quem tanto devemos também se enganou algumas vezes, como é óbvio no caso da data da primeira procissão do Senhor Santo Cristo. Ou, por exemplo, quando escreveu que a Maia não foi elevada a vila por ter sido em grande parte destruída por um incêndio. Ora aquele notável investigador fez, neste ponto, uma grave confusão. Gaspar Frutuoso, usando a linguagem do tempo, tanto se referia a um vulcão como terramoto ou como incêndio. E é assim que explica que a Maia teria sido vila se “não fora o incêndio segundo”, ou seja, a erupção da lagoa do Fogo, em 1563, cujas cinzas destruíram searas e outras culturas, deixando a terra estéril durante alguns anos.

Daniel de Sá

quarta-feira, 18 de abril de 2012

170º Aniversário do Nascimento de Antero de Quental


TENTANDA VIA

I

Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus, vem vagaroso...
Vem longe ainda a praia do futuro...

É a grande incerteza, que se estende
Sobre os destinos dum porvir, que é treva...
É o escuro terror de quem nos leva...
O futuro horrível que das almas pende!

A tristeza do tempo! o espectro mudo
Que pela mão conduz... não sei aonde!
– Quanto pode sorrir, tudo se esconde...
Quanto pode pungir, mostra-se tudo. -

Não é a grande luta, braço a braço,
No chão da Pátria, à clara luz da História...
Nem o gládio de César, nem a glória...
É um misto de pavor e de cansaço!

Não é a luta dos trezentos bravos,
Que o solo amado beijam quando caem...
Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,
Por não dormir no leito dos escravos...

É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima tristeza
Que à morte leva... sem se ter vivido!

Não há aí pelejar... não há combate...
Nem há já glória no ficar prostrado –
São os tristes suspiros do Passado
Que se erguem desse chão, por toda a parte...

É a saudade, que nos rói e mina
E gasta, como à pedra a gota d'água...
Depois, a compaixão, a íntima mágoa
De olhar essa tristíssima ruína...

Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhá-las – a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.

Cada pedra, que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaços!

II

A estrada da vida anda alastrada
De folhas secas e mirradas flores...
Eu não vejo que os céus sejam maiores,
Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!

Ah! via dolorosa é esta via!
Onde uma Lei terrível nos domina!
Onde é força marchar pela neblina...
Quem só tem olhos para a luz do dia!

Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora...
É de noite que os tristes se procuram,
E paz e união entre si juram...
Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!

E vós, que andais a dores mais afeitos,
Que mais sabeis à Via do Calvário
Os desvios do giro solitário,
E tendes, de sofrer, largos os peitos;

Vós, que ledes na noite... vós, profetas...
Que sois os loucos... porque andais na frente...
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé – ó vós, poetas!

Estendei vossas almas, como mantos
Sobre a cabeça deles... e do peito
Fazei-lhes um degrau, onde com jeito
Possam subir a ver os astros santos...

Levai-os vós à pátria-misteriosa,
Os que perdidos vão com passo incerto!
Sede vós a coluna de deserto!
Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!

III

Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços
Olhar apenas uma luz distante!

É preciso passar sobre ruínas,
Como quem vai pisando um chão de flores!
Ouvir as maldições, ais e clamores,
Como quem ouve músicas divinas!

Beber, em taça túrbida, o veneno,
Sem contrair o lábio palpitante!
Atravessar os círculos do Dante,
E trazer desse inferno o olhar sereno!

Ter um manto da casta luz das crenças,
Para cobrir as trevas da miséria!
Ter a vara, o condão da fada aérea,
Que em ouro torne estas areias densas!

É, quando, tem temor e sem saudade,
Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
Erguei o olhar à cúpula divina,
Heis-de então ver a nova-claridade!

Heis-de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
Abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do Futuro!

Antero de Quental
[Ponta Delgada, 18 de Abril de 1842-Ponta Delgada, 11 de Setembro de 1891]

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Única entre todas, e Mulher

“Preciso dela e do seu bem, para que não mais volte a acontecer-me isto de estar como perante a morte e ter o grande medo de morrer sozinho nesta casa. Ou para que o meu amor não envelheça de novo. Porque a gente gasta-se. A gente encosta-se a esta espécie de muros do acaso, apoia neles um ombro, um simples dedo cansado, e pensa:
- Nunca soube, nunca aprendi a namorar esta mulher para toda a vida. Nunca a levei comigo a ver o mar ou o voo das pombas que atravessam as manhãs e tornam o dia claro e profundo de azul.”
Tudo, no seu amor, se alterara já até ao aspecto próximo das nuvens que habitam as casas silenciosas dos velhos, com móveis de pessoas que eles não tivessem conhecido ou fossem ainda mais antigos do que eles. A gente pensa, sabem?, que a nossa carne se foi transformando aos poucos numa simples forma de estar sem imaginação. Por hábito. Como a caca há tantos anos caída na mesma retrete comum. Como a mesa, a cama, o perfil nocturno das ruas que se avista da janela. Pensa tudo. Pensa por exemplo que todas as coisas, e nós nelas, se foram gastando, esvaziando de si mesmas, e não sabe nunca desde quando nem porquê. Pensa que talvez alguém devesse ter chegado e não veio; alguém se esqueceu para sempre de nós a meio de um areal que se transformou em deserto e tem somente o som da nossa voz. […]
*
O homem estava pois escrevendo,
- Não sei por que raio me casei com ela, não sei como me aconteceu ter ancorado precisamente nesta casa e não noutra, nestes móveis, nos beijos rápidos dos meninos que me chamam papá, no corpo morno da mulher morena, volumosa e cada vez mais ácida, não sei quase nada a respeito dos meus sonhos perdidos, […]
*
Preciso tanto e tão-só de ti, meu Amor, como no dia em que supus a tua chegada à sala dos professores.
Mas, como sabes, existem também os meses que nem sempre regressam, embora os seus nomes se repitam. Talvez – quem sabe? – o mês de Outubro já não esteja longe, e possa juntar-nos a outros animais docentes, aos seus jogos de mesa, ao cão morto no fundo do estômago que são os almoços pobres, secos e envergonhados. Talvez Outubro, se chegar, torne oportuno o dia em que hei-de conhecer-te pela primeira vez.
Por enquanto, permaneço eu, do lado de cá, amando uma e outra, e todas as mulheres, e admirando daqui a graça, o pudor, a beleza doce daquela que dorme, loira branca e pequena. Tanto a adoro e venero e trago comigo, que a sinto em redor de mim, sempre numerosa e minha, tentando eu multiplicá-la para a poder encontrar em todos os lugares e a todos os momentos.
Quanto a ti, meu Amor, sabes que estou escrevendo um livro.
Sempre que me ponho a escrever-te um livro, começo pela absoluta, repetida necessidade de inventar-te. De repetir-te. De voltar sempre e só a ti. Pássaro e anjo.
Não é verdade, meu Amor, que a principal vocação dos pássaros – e também do anjos – é voar?
***
João de Melo, in Entre Pássaro e Anjo

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A Boneca Muda

Criara seis filhos. Sentavam-se à mesa quase sempre com uma fome já de horas, e raramente se levantavam saciados. O costume, em casa de pobres...
Os cinco mais velhos haviam emigrado, a mais nova fora viver para a grande cidade. Envelhecera mais o seu homem. Sozinhos, como no princípio, diziam-lhe as amigas a confortá-la. Não era nada... Teimou em não deixar a sua casa, quando o marido morreu. Mas a insistência da filha, aliada à doença que lhe enfraquecia os ossos e os fazia doer todos, convenceu-a contra a sua própria vontade. Arrastava as pernas e a vida entre o sofá e a janela. Olhando a loucura buliçosa da rua, era como se ela mesma fosse um daqueles manjericos que imitam a grandeza da planície em meio punhado de terra num vaso de plástico.
No primeiro Natal que passou enclausurada no cimento do progresso apressado, quis oferecer uma prenda à neta. Tinha ainda na ponta dos dedos a recordação da agulha e do dedal, e nas memórias da infância as grandes alegrias das pequenas coisas. Quando a filha percebeu que ela estava a fazer uma boneca de trapos, perguntou-lhe com um desdém agressivo: "Para quem é isso?" Com estranheza, porque a pergunta lhe pareceu desnecessária, respondeu: "É para a nossa menina. Para quem é que havia de ser?..."
Ouviu a habitual enxurrada de palavras do mau humor da filha e da sua impaciência. Que estava cada vez pior, que o juízo não tinha conserto, que não havia paciência para sofrer os seus disparates, que não percebia que os tempos tinham mudado... Que era um trabalho inútil, que a neta não ia ligar a um traste daqueles, que mesmo que gostasse da boneca não a deixaria brincar com ela, porque era uma vergonha pois as amigas só iam ter ofertas caras e a sua pequena também, que não era menos do que as outras. O fim da boneca era o lixo, para onde queria levá-la imediatamente.
Nada podia contra o vendaval dos novos tempos que enchia a cabeça da filha. Pediu apenas, numa súplica de submissão: "Deixa-me primeiro acabá-la. Depois, faz o que quiseres". Ouviu uns resmungos de incompreensão mal-humorada, e viu-a sair do quarto batendo a porta.
A filha cumpriu a promessa com que a ameaçara. A bocarra aberta do contentor deixava à vista a boneca sobre aquele excesso de lixo que anunciava o Natal. Uma das diferenças mais evidentes destes outros tempos eram os desperdícios da festa.
Acabara de se pôr à janela, quando viu uma criança recolher a boneca e sacudir algum lixo que se lhe pegara, apertando-a depois ao peito a embalá-la. Ao passar em frente da janela, perguntou-lhe: “Falas com a tua menina?” A pequena olhou-a surpreendida, e respondeu: “Ela não fala!” Com a satisfação de ver que o seu trabalho não fora inútil, disse-lhe: "Não fala, mas ouve." A criança sorriu-lhe, aconchegou a boneca ao peito, e afastou-se falando-lhe ao ouvido, mas de modo que ainda pôde compreender o que ela disse. "Vês...? A senhora não percebeu que te encontrei no lixo. Não vamos dizer a ninguém, para não fazerem pouco de ti. Está bem?..."
Daniel de Sá, in O Deus dos Últimos
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Nota de Daniel de Sá, a que tiro o chapéu.
Não faço parte dos que se entusiasmaram com o Acordo Ortográfico. Por isso, ao rever estes contos, optei por uma espécie de greve de zelo. Retirei todas as palavras abrangidas pelo dito, substituindo-as por sinónimos ou mudando a frase, porque a Língua Portuguesa é maior do que o Acordo e tem soluções para tudo.
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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O Homem Suspenso

Pior do que do sonho ou da evidência da sua casa, um homem pode sentir-se expulso de si mesmo, da sua vida, da certeza de na casa ter vivido uma história verdadeira, o seu caso de amor. Com ele, porém, acontece muito mais do que isso. Um acto de pura e definitiva exclusão; um apagamento dos seus passos, a perda da própria sombra, uma quase solvência do corpo da arte de ser e da sua condição de homem.
O mesmo vento fatídico e acidental o afastou do coração e do desejo de Carminho, assim como do contrato e do tempo daquela que sempre fora uma casa para o entendimento do amor como única salvação. Carminho fora ao tempo de esquecer os ressentimentos que contra ele acumulara ao longo de anos. Para ele, isso significou um recuo ao princípio da memória, até à declaração da sua inexistência. Como se passasse da condição de vivo ao absurdo de nunca ter existido.
Não deve haver pior humilhação do que essa, ver-se um homem excluído de tudo aquilo em que um dia acreditou: a casa, a vida, a certeza daquela suave e descuidada alegria que até então morava no coração da sua mulher. Soube-o com a mesma fria e total evidência: deixara de merecer a atenção e o desejo dela, ia pois começar a morrer.
[…]
Para ela, a única infidelidade seria sempre de outra ordem. Por exemplo, […] O esquecimento de tudo o que entre ambos devia permanecer vivo e essencial. As suas faltas de atenção. […] De resto fora a própria Carminho quem lho dissera vezes sem conta. Saturada das suas íntimas obrigações conjugais. Alegando que ele deixara de ser para ela um marido, para tão-só se refugiar, como um hóspede, na habitação e na ordem da casa. Vivia sob o disfarce de um comportamento em duplo, sem reparar nela, já sem lhe ser afável nem afectuoso […].
Quando na vida de um homem finda a atenção da mulher que durante anos o amou, ele conhece o princípio e o fim do seu próprio mundo, o pânico da morte, o precipício da evidência e da perdição.
Mas não só da casa ela o vinha expulsando. Também do centro convulso e do firmamento turvo e atribulado da sua vida. Saber até que ponto será esse também o apagamento dos seus passos, dos seus longos amados bons sentimentos, de tudo o que aprendeu com o mundo, isso só o tempo o dirá.
João de Melo, O Homem Suspenso [1996]