terça-feira, 5 de maio de 2009

A escolha de um outro amor

A actividade política de Antero de Quental era por ele assumida como uma imposição moral, como uma espécie de missão. Desde muito cedo se percebe nele algo de nobre, de intrinsecamente bom, que o faz abdicar de uma possível felicidade individual, para se dar inteiramente à construção do bem colectivo. Esta escolha não foi, com certeza, fácil e exigiu dele um esforço constante para não ceder às humanas tentações do homem vulgar. Em carta de 1866 (com apenas 24 anos) a António de Azevedo Castelo Branco, diz:

A natureza em mim é conservadora: só o espírito é revolucionário. Esta desarmonia fundamental te sirva para explicar todas as minhas fraquezas, contradições, cobardias mesmo. Só o que te posso assegurar é que entro nesta acção violenta contra mim mesmo com uma boa fé que me dá ânimo enquanto de pé e (se tenho de sucumbir), caído, me será a melhor das consolações, poupando-me a este último e verdadeiro inferno: o desprezo do homem por si mesmo.

O "statu quo" tem doçuras! Pelo que me tem custado a combater as visões do passado, que lagrimosas me surgem no meu caminho a enlaçar-me nos braços acalentadores e brandos, a suplicar-me, a arguir-me como duma traição, desta revolta contra metade já de uma vida, por aí meço a força de inércia da minha natureza. De inércia? não: de harmonia, fora melhor dizer. O natural não é quebrar violentamente o fio da vida, para i-la reatar, não sei onde, bem longe, fora de toda a tradição, sem mais antecedentes do que uma ideia tenaz, dominadora, sim, mas afinal uma mera abstracção… Não: é preciso que o ar social esteja feito de um modo bem impróprio para as exigências naturais do pulmão humano, para que, chegando o homem à idade adulta da consciência, se vire e diga “nada disto é a vida: para trás! para o lado! correr vales! a ver se se acha, longe de todo o rastro conhecido, coisa que mais nos dulcifique por dentro este azedume insuportável!”

Mas a vida é um silogismo: o tecto paterno é uma premissa; a outra é a morte na doçura da sua própria consciência e na fraternidade das outras consciências que lhe aprovam a vida. É preciso que a sociedade seja bem ímpia para obrigar o homem à blasfémia social por excelência – a Revolta. O lar é toda uma política; e o "statu quo" uma filosofia.

Quantas vezes as lágrimas me têm corrido no meio destes pensamentos! Afora tudo isto eu tenho preso ao coração um amor que não sei (talvez porque não quero, nem ele o merece) como o tirar de aqui (1). Ele me simboliza toda uma vida segundo a natureza; vulgar... e bela como qualquer árvore da primeira colina que o sol e os ventos visitam; quero dizer, aquilo que todo o homem tem direito de exigir, porque nenhum homem tem direito de exigir mais... Enfim, o instinto, com todas as suas vozes, tem levantado a sua celeuma no meio do silêncio que eu com a minha razão julgara impor a este ser, para como um ditador determinar e fazer caminhar no vazio as minhas abstracções ordenadas em colunas e batalhões! O instinto! a tradição! a espontaneidade! a natureza! [...]

Entretanto, a minha persistência e as boas disposições de continuar te mostram que tenho sabido, com subtileza de sofista umas vezes, outras com as cóleras de revolucionário, responder a este coro desgrenhado das Níobes da minha mitologia íntima e pessoal. É que tudo aquilo, por isso mesmo que é santo e justo e radioso, só na santidade, na justiça e na luz se pode aceitar. É o carácter das coisas verdadeiramente boas não poderem ser somenos. São ou não são, eis tudo. O espírito revolucionário, visto a esta luz, acha-se não ser no fundo senão um imenso espírito de paz e de harmonia, que por isso mesmo que o não deixam ser pacífico à sua vontade se enfurece e reage. É a filosofia dos desesperados, é a coragem dos medrosos.

Apesar das frustrações, em 1890 e já próximo do fim, mantém a mesma opção de vida, em carta a Jaime de Magalhães Lima, a propósito da Liga Patriótica do Norte:
*
O que se vai passar em Portugal é seriíssimo. Faça cada um o seu sacrifício no altar da Pátria. Eu sacrifico a minha saúde, que naufragará de todo no meio disto, e muito provavelmente o meu nome, que antes de seis meses estará manchado. Não importa. Quero sacrificar a vida, e morrerei contente se tiver vivido seis meses ao menos da verdadeira vida de homem que é a da acção por uma grande causa.
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(1) Referia-se a D. Maria da Mota Porto-Carrero, que veio a casar com o Dr. Filomeno da Câmara de Melo Cabral. Segundo J. Bruno Carreiro, foi ela que inspirou os sonetos Pequenina, Quinze Anos, Jura e o poemeto Maria.

3 comentários:

joão coelho disse...

Bem lembrado, Elisabete. Mas, como fazes notar, Antero tem estas atitudes aos 20 anos. Enquanto homem maduro, não se lhe conheceu uma paixão consistente, prolongada, por uma mulher.
Provávelmente porque se concentrou noutras coisas da vida.
Não conhecendo toda a obra dele - é muito extensa - há um poema que julgo que quase o define. Chama-se "Voz interior" e dedicou-o ao seu amigo João de Deus..

"Embebido n'um sonho doloroso,
Que atravessam fantásticos clarões,
Tropeçando n'um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso..

Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céus arroja os seus cachões,
Através d'uma luz de exalações,
Rodeia-me o Universo monstruoso..

Um ai sem termo, um trágico gemido
Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
com horrível, monótono vaivém..

Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem! "

Saudações atlânticas

Elisabete disse...

És capaz capaz de ter razão,João.
Se, por um lado, se revolta contra um Universo que se lhe apresenta "monstruoso" (cheio de instabilidade, gemidos e sofrimento); por outro, acredita no Bem como fim último e possível. Ele próprio um universo mais pequeno, mas igualmente contraditório: um Antero "nocturno" em tudo diferente do Antero "luminoso", para usar as palavras de António Sérgio.
Antero: um homem inteiro, uma personalidade demasiado rica para que não reunisse em si todos os contrastes da natureza. Ao mesmo tempo, um homem lúcido, que via demasiado longe para que utilizasse um único caminho, exacto e definitivo e, portanto, frio, sem ser assaltado pela inquietação que traz o conhecimento da relatividade das coisas. Apesar dos desânimos e das incertezas, a meta lá estava e era sempre a mesma: o Bem, a Justiça, o Absoluto, acreditando na capacidade do homem para lá chegar, praticando a virtude e valorizando a vida espiritual. Para lá desta vida feia e rude, a sua maravilhosa fé no futuro:

"Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços,
Olhar apenas uma luz distante."

Ibel disse...

João e Elisabete,

Mas que delícia de diálogo!!!!!
O Antero é das personalidades literárias mais complexas que tenho estudado.É fascinante e trágico.Violento,provocador,doce, abatido e solitário.Um percurso de vida exterior e interior de euforia e de entusiasmo que se esboroaram em cinza e muita dor.