quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Natal

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam… Lá se tinha a fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim… Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê? Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa… E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura… Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal, o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! — desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
Miguel Torga, in Natal (Editora Arcádia – 1978)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A propósito dos Alfenins...

Alfenins
Ex-votos & alfenim
Quando a cabeça dói e o clínico não encontra solução para o problema, mesmo depois do recurso exaustivo a todos os exames subsidiários que a imaginação lhe dita, sempre se pode invocar o santo da devoção prometendo-lhe, no mínimo, uma cabecinha de cera para lhe agradecer o serviço. Caso ele atenda o pedido, o beneficiado deve levar ao local de culto o objecto prometido e, se possível, colocá-lo em lugar de destaque no altar do invocado para que dê testemunho público, não só da gratidão pelo serviço prestado, mas também para que fique como prova do seu poder de intercessão nas altas esferas do poder celestial. Como alternativa caída em desuso pode mandar pintar um quadro onde de modo mais ou menos explícito figurem os pormenores da ocorrência. A estas dádivas de reconhecimento costuma dar-se o nome de ex-votos.
O alfenim é um doce feito com água, açúcar, uma colher de vinagre de vinho branco e manteiga que permitem a obtenção de uma massa branca moldável e que, como a palavra sugere, tem origem árabe. Com efeito, a receita terá sido conhecida na Península Ibérica durante a ocupação muçulmana a partir do século VIII e, com o correr do tempo, acabou por radicar-se em território nacional e influenciar a doçaria portuguesa, muito particularmente a do Algarve.
A sua divulgação nas ilhas adjacentes pensa-se que terá ocorrido no ano de 1465 quando partiram para os Açores, com a finalidade de povoar a ilha Terceira, algumas famílias algarvias de origem mourisca que, afeitas ao uso do manjar, terão difundido no arquipélago a arte de confeccionar a preceito.
A fórmula também viajou para a Madeira. Sabemo-lo porque do Funchal partiram para Roma, em 1516, como oferta ao papa Leão X, o sacro palácio e os cardeais, estes em tamanho natural, feitos de alfenim dourados a partes, que lhe davam muita graça.
Nos Açores a sua popularidade mantém-se. Devido à sua brancura, que se pode associar a pureza ou purificação, o alfenim foi integrado no culto religioso cristão e tornou-se um doce característico das festas do Espírito Santo.
O facto de se poder moldar a gosto a massa obtida possibilita que se criem ao sabor da imaginação as mais diversas formas decorativas, entre as quais avulta a da pomba representativa do Espírito Santo. Porém, a criatividade não se fica pela invocação, pela decoração e pelo consumo. Também é possível ver surgir durante os festejos representações variadas de partes do corpo humano, como forma de agradecimento pelas mercês obtidas. Neste caso, são encomendadas à doceira, com a antecedência necessária, as peças da anatomia sobre as quais incidiu a cura pedida com a indicação explícita do peso de açúcar que deve empregar na sua confecção para deixar bem clara não só a natureza do alvo, mas ainda a grandeza da intervenção da terceira pessoa da Santíssima Trindade.
Foi assim que, passados alguns séculos, concebido pelos árabes para regalo sensorial, se veio a converter ao Cristianismo e a transformar num ex-voto comestível. Bem pode dizer-se que as voltas que o doce deu são as voltas que o mundo dá.
Lima-Reis (médico), in Notícias Magazine

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Quase como...

Nasceu em Ponta Delgada, a 18 de Fevereiro de 1928
e aí faleceu a 9 de Novembro 2010
Fernando Aires

Quando saíram, o sol bateu nos cabelos de Helena e ele notou que não eram, propriamente, arruivados, mas mais da cor do âmbar – um brilho quente e raro que, segundo dizem os astrólogos, pertencem, de preferência, às mulheres do signo Balança. Passaram a encontrar-se todos os dias no bar da Faculdade e foram aprendendo que aquela era a hora boa, a hora esperada de todos os dias. E, de repente, num momento enigmático de desafogo da alma, Helena pareceu-lhe a criatura mais sedutora que os seus olhos tinham visto – e então deu por si tão desajeitado, tão ansioso, que ela reparou. Que foi? – perguntou-lhe. Ele não respondeu. Pararam, por um momento, a contemplar o panorama da cidade vista lá do alto, da Escadaria Monumental. Depois, seguiram a conversa com aquela volubilidade mediterrânica condizente com a claridade do dia. Para os lados do rio, estava a branco e oiro que se via por entre árvores e torreões de casas sem idade – e Álvaro deixou-a à porta do Lar.

Desde então, começaram a habituar as mãos uma na outra quase sem darem por isso, até que uma vez, sem combinarem coisa nenhuma, encaminharam-se ao Aqueduto, entraram no Jardim Botânico – e foi num banco da Avenida das Tílias, ao som do repuxo do tanque, que ele se voltou, a olhou nos olhos, nos cabelos tão raros. As sombras errantes das tílias com súbitas cintilações. E a ternura – aquilo que foi aprendendo a chamar de ternura -, assim uma coisa intensa a rebentar-lhe dos olhos, e por dentro, sobretudo por dentro. Quase como um choro silencioso. Quase como. Como o quê?

Desde esse dia, Álvaro acostumou-se a pensar em Helena, o seu carinho, o seu instinto de mulher. Os dias a avançarem, os dois cada vez mais juntos a descobrirem-se, e ele a adiantar os minutos que todos os dias demoravam para ir ter com ela, com o olhar dela a crescer da sombra dos cabelos até ocupar todo o espaço que ia do rio ao alto da Sé. Era assim como se, de repente, o curso do entendimento se tivesse alterado e já não fosse preciso dizer tudo até ao fim, pois que bastava a eloquência dos silêncios, das linhas do rosto, o fluido à flor da pele, para restabelecer a nitidez do essencial. Por um período, Álvaro não teve olhos para mais nada senão para o voo das aves, as transparências do rio, os bons sinais da palma da mão. Até mesmo na janela do Arquimínio barbeiro lhe pareceu ver nascer umas minúsculas flores azuis, de sementes decerto espalhadas pelo vento.

Assim se alterou o acontecer da cidade, mesmo nas pequeninas coisas. O relógio da Universidade, por exemplo, nem sempre fazia ouvir as horas. Dependia. Não é que ele não cumprisse a sua função de relógio que era a de ser pontual, porém, o ouvi-lo ou não ouvi-lo dependia dos interesses do momento que tornava o ouvido atento ou distraído. Assim, algumas vezes acontecia Álvaro faltar às aulas por não ter dado pelas horas da torre. Dantes, não acontecia: as horas batiam sempre nítidas e a tempo. Agora era Helena, e os seus cabelos, e a sua voz, a ocupar o espaço todo que ia desde a Baixa ao alto da Sé. E porque ninguém estava ali para lhe ler os pensamentos, atreveu-se a pensar que o que enche intensamente o coração, enche o mundo, não deixa espaço para mais nada, nem sequer para um simples badalar de sino. Já lá na Ilha, em tempos, era assim com o relógio da torre da Matriz quando estava com Maria Clara. Não ouvia o relógio. Crescera, era agora um homem, acontecia a mesma coisa. Os anos passam e a gente muda muito pouco.

Fernando Aires, A Ilha de Nunca Mais

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Ilha das Flores.Fajãzinha

Um abraço solidário para a população da Fajãzinha, onde em 28 de Agosto de 2009 jantei neste restaurante típico e fotografei um belo pôr-do-sol.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Fernando Pessoa

(13 de Junho de 1888-30 de Novembro de 1935)

As Ilhas Afortunadas

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Que voz vem no som das ondas

Que não é a voz do mar?

É a voz de alguém que nos fala,

Mas que, se escutarmos, cala,

Por ter havido escutar.

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E só se, meio dormindo,

Sem saber de ouvir ouvimos,

Que ela nos diz a esperança

A que, como uma criança

Dormente, a dormir sorrimos.

***

São ilhas afortunadas

São terras sem ter lugar,

Onde o Rei mora esperando.

Mas, se vamos despertando,

Cala a voz, e há só o mar.

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Fernando Pessoa, in Mensagem

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A mãe de Fernando Pessoa, D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira, era natural da Ilha Terceira.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

domingo, 12 de setembro de 2010

As duas maravilhas naturais dos Açores

Lagoa das Sete Cidades
Ilha do Pico
Sem dúvida, dois diamantes dos Açores. Tratando-se dum concurso, apenas uma de cada categoria poderia conquistar o primeiro lugar. Das 21 candidatas, difícil seria encontrar alguma que não merecesse ganhar. E, só nos Açores, havia mais três...
Conclusão: Portugal é um país cheio de maravilhas naturais. Reconhecer isto é bom, faz bem à alma. Mas traz, também, uma enorme responsabilidade: a de preservarmos, obrigatoriamente, estes pequenos paraísos que foram postos à nossa guarda.
Quanto a estas duas maravilhas... Bem! Como diria o Malato, já fui muito feliz aqui.
Lagoa do Fogo

Algar do Carvão Furna do Enxofre

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Novo livro BRUMAS DA ILHA

Para saber mais, vá a http//brumasdailha.blogspot.com

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

terça-feira, 15 de junho de 2010

António Manuel Couto Viana (24 de Janeiro de 1923-8 de Junho de 2010)

in nestahora.blogspot.com Ilha de São Miguel
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Para Eduíno de Jesus
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Vejo os romeiros da Semana Santa
Atravessando os campos plo sol-posto:
O cajado na mão; ao ombro, a manta,
E a fé em cada rosto.
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Na alba do domingo, assisto
(Ainda luzem estrelas)
À missa cantada ao Senhor Santo Cristo,
Entre a pompa dos oiros, flores e velas.
*
À porta do Convento da Esperança,
Rezo ao banco de Antero.
A sua alma, em paz, ali descansa,
Depois do tiro do desespero.
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E a paisagem bucólica,
Com lagoas de névoas e frescuras,
Melancólica,
Escorre das alturas.
*
Até onde o olhar se perde,
Vacas pretas e brancas
Mancham o pasto verde,
De úberes túmidos, de pesadas ancas.
*
Tão alvas e tão azuis, nas bermas das estradas,
As hortenses floriram os fuzis liberais,
Por serem dessas cores as bandeiras ousadas
Que iriam invadir as areias e os cais.
*
Enfeitam-na, também, as rosas do Japão
(Vai-lhe bem o cetim!).
E respira da boca do extinto vulcão
Hálitos de jardim.
*
Nas Furnas,
Arde o coração da terra.
E, das caldeiras soturnas,
Um fumo sobe, ondula e erra.
*
Fui ao Nordeste, um dia,
Comer cracas, beber vinho de cheiro,
Enquanto a Ilha bebia
Nevoeiro.
*
E porque não beber chá
(Chá chinês da Gorreana):
O Oriente que dá
Delicadeza à flora açoriana?
*
Beber, na estufa, até, um sumo de ananás,
Como um sol ruivo, acre e tropical
Que ao severo da Ilha satisfaz
a sede sensual.
*
No sabor das bananas, que novos exotismos!
Verdes, se verdes, depois, doiradas,
Frente a espessuras, prados, abismos,
Fontes, levadas...
*
Ilha a emergir da espuma,
Sê sinal de salvação:
Traz-me, perdido na bruma,
El-Rei Dom Sebastião.
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António Manuel Couto Viana
20 de Fevereiro de 2008

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Um cantinho de Vitorino Nemésio na sua terra natal

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
Vitorino Nemésio, in A Concha
Busto de Vitorino Nemésio A casa das tias, na Rua da Misericórdia, na Praia da Vitória A Igreja da Misericórdia, em frente à "casa das tias"

quinta-feira, 13 de maio de 2010

SAUDADES DA ILHA

Festas do
Senhor Santo Cristo dos Milagres
Ponta Delgada (e a ilha de S. Miguel) em festa e eu, aqui tão longe...

domingo, 25 de abril de 2010

quinta-feira, 11 de março de 2010

Torga em S. Miguel

Ponta Delgada, 16 de Março de 1970 – Aqui tenho já no aconchego dos olhos alguns aspectos reais de S. Miguel, que começou por ser uma fantasmagórica linha convexa no mostrador do radar de bordo, foi progressivamente passando de miragem a vulto informe, se clarificou a seguir em manchas risonhas de cultivo e casario, e finalmente pude sentir concreta e vulcânica debaixo dos pés.
São disparos sôfregos da retentiva, sem ângulo estudado, nem luz medida. Relances citadinos, instantâneos humanos e, sobretudo, panorâmicas da ilha, sempre com o mar ou uma cratera à vista. As imagens mais emocionadamente recolhidas, de objectiva focada nas Sete Cidades, justamente por causa desse nervosismo da alma, creio que ficaram tremidas. Assombrado, perdi a firmeza diante dum tal fascínio, que Raul Brandão, a pinceladas de caneta, me inculcara à curiosidade na figuração de uma fresca aguarela, de tintas ainda a escorrer, e que, afinal, desdenhava soberanamente de todas as paletas e desafiava os mais ousados voos da imaginação. Tão certo é haver trechos da natureza que, por mais poderosa que seja a mão do escritor, nunca poderão transformar-se em trechos de literatura. Ficam neles meras e sugestivas ficções. Ou então sou eu que, faça o que fizer, não consigo ver pelos óculos de ninguém. Seja como for, no caso presente, a representação que trazia no pensamento não correspondia à realidade. E acabei por gastar o rolo emotivo a abrir e a fechar a retina, numa espécie de frenesim suicida, como se todo eu, na ânsia de apreender o inapreensível, me precipitasse cego naquele abismo de cor, idílico e terrível ao mesmo tempo, de paredes abruptas e alcatifado por um lago de límpida transparência, a reflectir com irónica serenidade o pasmo e a angústia de quem olha de cima.
Miguel Torga, Diário XI

segunda-feira, 8 de março de 2010

Uma Mulher com M grande

Maria Norberta Amorim (à esquerda)
Tive o privilégio de conhecer a Professora Doutora Maria Norberta Amorim, quando frequentei, na Universidade do Minho (Pólo de Guimarães), o Mestrado de “História das Populações”.
Esta Senhora, natural da Ilha do Pico, é um marco na investigação em Demografia Histórica. Adaptando o método francês de reconstituição de famílias, de Louis Henry e Michel Fleury, à especificidade dos registos paroquiais portugueses, criou o novo método de reconstituição de paróquias.
Maria Norberta de Simas Bettencourt Amorim, nasceu a 14 de Janeiro de 1943 na freguesia de S. João, concelho das Lajes do Pico.
Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1971), desde 1969 que se dedicou à Demografia Histórica, num trabalho pioneiro em Portugal de análise demográfica para o período do Antigo Regime.
Tendo por base os registos paroquiais (de baptismo, casamento e óbito), existentes em Portugal desde finais do séc. XVI, a metodologia de reconstituição de paróquias tornou possível um aprofundamento de fenómenos, como a Mortalidade e a Mobilidade, que a metodologia de Fleury-Henry não permitia, e a interpretação da evolução da população à luz da interacção das variáveis demográficas, de Fecundidade, Nupcialidade, Mortalidade e Mobilidade.
O cruzamento com outras fontes (róis de confessados, matrizes prediais, listas de eleitores, autos de visitação e de desobriga, etc.) em encadeamento genealógico, tem permitido um grande desenvolvimento da História da Família e da História Social.
Os recursos informáticos possiblitam, hoje, a agilização do processo e a metodologia de reconstituição de paróquias é usada por largas dezenas de investigadores não só em Portugal, mas também na Espanha e na América Latina.
Professora catedrática da Universidade do Minho hoje aposentada, continua como investigadora do NEPS (Núcleo de Estudos de População e Sociedade), por si projectado.
Em Dia Internacional da Mulher, quero prestar, aqui, homenagem à grande investigadora e ao grande ser humano que é a Professora Maria Norberta Amorim, por acaso açoriana e picarota.

terça-feira, 2 de março de 2010

PARABÉNS A VOCÊ...

As maiores felicidades e a minha sincera gratidão
por tudo o que a sua escrita me tem dado.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Beleza sem limites

Ilha do Pico
(AÇORES)
Enviadas, via e-mail, por M. Mercês Coelho,
a quem agradeço a gentileza.