quarta-feira, 2 de março de 2011

Açores e Atlântida

[…] vos quero começar a contar o duvidoso e incerto [descobrimento] destas ilhas, que dias há que são descobertas.
Porque as coisas antigas, de que pela pouca curiosidade dos homens não ficou memória escrita, deram ocasião e causa a muitas opiniões diferentes e a diversos e, às vezes, não acertados pareceres, como são os que se têm destas ilhas dos Açores e, principalmente, destas de S. Miguel e de Santa Maria, de que mais particularmente contar quero, que, por não haver quem disso escrevesse, ainda que algumas coisas contem, é tudo tão […] duvidoso que põem grande dificuldade e trabalho ao que quer atinar e acertar com a verdade […].
[…] sabei […] que destas ilhas dos Açores há duas opiniões […]
A primeira é, que muitos disseram e tiveram para si, que foram terra firme, apegadas na parte de Europa pelo cabo que os portugueses a estão mais povoando e cultivando, e que era uma ponta da serra da Estrela que se mete no mar, na vila de Sintra. E, por isso, navegando destas ilhas a Portugal, ordinariamente se vai demandar esta rocha de Sintra, como que a seu todo, por onde quebrou, se vai ajuntar a parte. […] Porque dizem que todas as ilhas têm as raízes na terra firme, por muito apartadas que estejam dela, e que doutra maneira, como coisas fundadas no ar, não se sustentariam. E, desta sorte, querem dizer e afirmar que todo este espaço grande (que devia ser terra firme) de Portugal até estas ilhas se subverteu e sumiu nalgum tempo e cobriu das águas do mar, que agora o possui, e ficaram sobre ele levantadas estas ilhas, que, como pedaços daquela grande e antiga terra, sem se sumir escaparam.
A segunda opinião é fundada no que escreve o grave Platão no seu Diálogo de Timeu e Elísio, ao princípio, onde querendo engrandecer os atenienses e como foram tão animosos e venturosos, que em tempos antiquíssimos, de que já não havia memória entre eles, porque havia nove mil anos, haviam subjugado e vencido o povo belicosíssimo da ilha Atlântida, que houvera antigamente no mar Oceano Atlântico […]. Conta ali maravilhas Platão daquela ilha […]. Dali inferem alguns que estas ilhas dos Açores foram e são uma parte desta Atlântida. A qual diz Platão que era maior que África e Ásia, porque tomava das Colunas de Hércules, que são em Cádis, na boca de estreito, e se estendia por todo este mar do Ocidente até umas ilhas que diz que estão junto de uma terra verdadeiramente firme […] a causa dá ele, dizendo que se alagou esta ilha Atlântida por grande sobejidão e correntes de águas, pelo que este mar estava apaulado, e, pela tormenta grande com que se fundiu a Atlântida com tudo o que tinha, ficou tanto lodo e ciscalho nele, que se não podia navegar.
E afirmam alguns, que têm a segunda opinião, que se não navegou dali a muitos tempos e que não com sobejidão das águas aquela ilha se destruiu, mas com terramotos e incêndios e coluviões ou dilúvios da terra, e que, assim, ficaram dela estes pedaços destas ilhas dos Açores sujeitos àquela maldição e trabalho.
O mesmo Platão diz que a Atlântida era fertilíssima, produzia todos os metais em grandíssima abundância, principalmente cobre, e, como estes não se criam senão em terras que têm muita matéria de fogo, como é enxofre, pedra-ume, salitre, e outros minerais menores, claro está que serão sujeitas a terramotos, a incêndios e dilúvios […]. E já sabem todos que nesta ilha e nas demais dos Açores há tanto disto, principalmente, de enxofre, de marcassite e de pedra-ume, que, por isso, dizem que bem parecem com a mãe de que procederam.
[…]
E ser também possível que estas ilhas dos Açores fossem antigamente pegadas com terra de Portugal (como diz a primeira opinião), ou pedaços que ficaram da grande ilha Atlântida, que (como diz Platão) se alagou, segundo tem a segunda opinião que referida tenho.
Não desfaço […] coisa alguma nestas opiniões tão autorizadas, porque bem entendo que mais estranhas maravilhas tem feito e pode fazer Deus Omnipotente e a poderosa Natureza. E muito maiores coisas que estas sei que aconteceram, e podiam e podem acontecer no Mundo […]. E as razões, que em contrário vejo, me fazem não crer a qualquer delas, pois uma desfaz a outra, que é a primeira razão que contra elas ambas digo, porque, se uma for verdadeira, sendo estas ilhas dos Açores pedaços da ilha Atlântida subvertida, a outra há-de ser mentirosa, pois não seriam pegadas com Espanha, que é terra firme. E se a primeira for certa, sendo em algum tempo pegadas estas ilhas com a rocha de Sintra, bem se segue que poderá ser ou seja a segunda falsa, não sendo estas ilhas pedaços da ilha Atlântida, senão de Portugal, que é terra firme e não é ilha; quanto mais que nem uma nem outra destas opiniões me satisfaz, como, porventura, a quem as tem não poderá satisfazer a minha.
[…]
Mas o meu parecer é (salvo o melhor juízo) que nunca estas ilhas foram apegadas com a terra firme de Portugal, nem, tão pouco, são parte ou pedaços daquele ilha Atlântida subvertida, ou de Platão fingida, ou mal dele entendida, porque, se eu contar, desde o primeiro, todos os reis e governadores que em Espanha foram até o tempo de Platão, sem se saber nem escrever que algum deles fosse em algum tempo vencido de reis de Atlântida (como Platão conta), bem se seguirá e crerá que, pois, o colhem no que não é, nem foi, nem, como ele diz, houve tal Atlântida, e, mostrando eu que nos mesmos tempos foi navegada a costa de Espanha toda, como agora é pela parte do Ocidente, claro ficará destas ilhas dos Açores não haverem sido em algum tempo pegadas nela.
[…] fizeram suas povoações junto do mar do cabo de S. Vicente, os quais habitadores nunca fizeram menção de ilha Atlântida, que forçadamente haviam de ver, se ali tão perto estivera, como Platão afirma.
E contam os autores gregos que: […] Além de Cádis não há navegação ou terras para onde navegar. Porque não sabiam parte de outras terras naquele mar, nem de ilha Atlântida, nem tal notícia houve nunca dela, senão a que Platão, de ouvida, sem mais fundamento, quis crer e contar, porque, se, como ele diz, a ilha Atlântida começara de junto daquelas colunas e estivera ali perto, ou houvera notícia dela naquele mar ocidental tão vizinho, não dissera Hércules estas palavras ao assentar das colunas; a qual sentença de Hércules, naquele tempo, se confirma com o nome que Cádis tem, que se chama Gades, que em hebreu quer dizer cousa final ou extrema, porque ali se acabava a terra, sem haver, nem se ver, outra mais além, nem a ilha Atlântida ali perto, donde parece que era ali o cabo da terra, sem haver junto dela tão grande terra Atlântida, como Platão quis dizer.
[…] veio por mar um capitão chamado Ulisses à terra que agora chamamos Portugal, onde quase no ano de mil e cento e sessenta e três, antes do nascimento de Cristo, fundou na ribeira do rio Tejo uma cidade que de seu nome se chamou Ulissipolis, que em língua grega quer dizer cidade de Ulisses, que agora se chama Lisboa. A qual, em nossos tempos, é a maior povoação de Espanha e é ordinário aposento dos Reis de Portugal.
[…] até este ano de quatrocentos e cinquenta antes do nascimento, em que Platão floresceu, nunca se soube parte de ilha Atlântida, nem escreve nenhum autor dela, nem que reis dela vencessem alguns reis de Espanha, nem que estas ilhas dos Açores estivessem pegadas com a Rocha de Sintra, pois navegavam aquelas nações, acima ditas, a costa de Espanha, da boca do estreito de Gibraltar até Lisboa, e até Cantábria […] E não rodeavam tão longo caminho, como fora, se estas ilhas dos Açores estiveram pegadas com a terra de Portugal, como diz a primeira opinião. Nem viam ilha Atlântida junto das Colunas de Hércules, por onde eles passavam, donde começava a mesma Atlântida, de que dizem ser parte estas ilhas, segundo tem a segunda opinião, fundada no que Platão refere, pelo que nenhuma destas duas opiniões parece verdadeira, nem tem por si fundamento firme, nem razão provável.
[…]
Dito tenho como em todo este tempo, do dilúvio de Noé até quatrocentos e cinquenta anos antes do nascimento de Nosso Salvador, em que Platão floresceu […], nunca se achou feita menção de ilha Atlântida, senão a que conta Platão, que, sem fundamento, quis dar crédito nisso a algum velho verboso que, fingidamente, lho contaria, porque não pode ser que alguém dela não falasse ou escrevesse, se no mundo houvera cousa tão grande, rica, poderosa e belicosa, ou, ao menos, de sua subversão que em Espanha, tão chegada sua vizinha, houvera de ser sentida e mui notória […]. E como na navegação, que, então, se cursava pela costa de Espanha não se fazia tanto rodeio que pudessem estar estas ilhas dos Açores pegadas nela […].

Mapa de Athanasius Kircher mostrando a Atlântida no meio do Oceano Atlântico. De Mundus Subterraneus, de 1669, publicado em Amesterdão. O mapa é orientado com o sul para cima (Wikipédia)

[…] se tornaram à cidade de Roma, sem achar estas ilhas dos Açores pegadas com a costa de Portugal ou de Europa, rodeando-a toda até ao cabo de Finisterra, sem fazer tão longo rodeio como fora, se pelas ditas ilhas dos Açores foram. Pelo que, do que tenho contado, se segue que nunca estas ilhas dos Açores foram pegadas com Portugal, como tem a primeira opinião, nem com ilha Atlântida, que não houve antes nem depois de Platão […], que é a segunda opinião, como, pelas histórias contadas atrás e pela experiência que dos mais tempos já tão conhecidos e lembrados temos, tão claro parece.

[…]

Ainda se Platão não tivera que o Mundo teve princípio e cuidara, como cuidou Aristóteles, que era ab eterno, deste erro pudera persuadir que houvera em algum tempo atrás (de que não houve memória de homens) a ilha Atlântida, porque ninguém, então, lho pudera nem soubera contrariar, pela infinidade de anos em que atrás pudera haver sido o que contara ele e qualquer outro que quisera fingir histórias muito antigas. Mas ele tem que o Mundo teve princípio e a Igreja Católica, que é mais verdadeira e certa mestra que as escolas de Atenas, assim o afirma; e é verdade infalível de fé que teve o Mundo princípio, como se vê e prova no primeiro capítulo do Génesis, onde a Sagrada Escritura começa que no princípio criou Deus o Céu e a Terra. E temos anos contados no Mundo, desde o princípio dele até agora.

E os reis e governadores de Espanha que de Tubal, primeiro rei dela, começaram até os que em tempo de Platão e Aristóteles, seu discípulo, reinaram e governaram, e claramente vimos que, no tempo que eles reinaram e governaram, nem setecentos e cinquenta anos antes que Platão escrevesse […] haver tal Atlântida, nem rei dela, que aos de Espanha em algum tempo depois, nem dantes, vencesse, como tenho contado, os que a Tubal sucederam até os anos em que Platão e Aristóteles floresceram, e até os tempos claros e conhecidos em que notoriamente experimentamos e sabemos não haver tal Atlântida, por onde, nestes nossos tempos acordados, parece ficar ar e nada o sonho da Atlântida que Platão, como dormindo, sonhou e contou. […]

Não quero nisto dizer que Platão quisesse fingir esta história da Atlântida, senão que a contou como a ouviu a alguns, a que deu mais crédito do que o necessário […]

Também diz Platão que dos egípcios ouvira o que da Atlântida conta […]

Platão, como coisa nova, conta aos atenienses esta história da Atlântida e dos reis dela, como, sendo tão belicosos, foram vencidos pelos mesmos atenienses, como a eles nova e deles nunca sabida, nem ouvida. Eu não sei como possa ser que uma coisa tão grande, como diz que era a Atlântida, e tão poderosos reis dela e vencedores dos reis de Espanha, ou a subversão dela, ou a vitória que dela houveram os atenienses [...], sendo cada uma destas coisas tão grande e de tanto nome, que a menor delas era digna de memória perpétua, fosse ignorada e esquecida no Mundo todo, e especialmente em Espanha e em Atenas, pois de muito menores coisas e acontecimentos há tantas memórias e estão as escrituras cheias […]

Mais claro que o meio-dia fica e parece que nem reis de Atlântida venceram reis de Espanha, nem atenienses venceram reis de ilha Atlântida nem tal Atlântida no Mundo houve em algum tempo, pois tenho contado os tempos e as mais notáveis coisas e guerras deles (em que Platão diz que foi), sem neles, dantes nem depois, disso se achar nem em escritura, nem tradição, nem memória de homens lembrança, faro, parte, nem mandado.

[…] sem haver em tempo de nenhum deles memória de vitória que os atenienses tivessem de reis de Atlântida, pelo que claro parece nunca haver sido tal ilha. E não a havendo, mal podem ser estas ilhas dos Açores partes dela.

[…]

Se, para prova de não serem estas ilhas parte de Europa, nem da ilha Atlântida, não são suficientes as razões que atrás tenho ditas, digo que elas e outras, que por brevidade deixo de dizer, são bastantes para me persuadir e concluir, a mim, a ter o contrário das duas opiniões e me convencem meu entendimento para afirmar que entendo e não posso entender outra cousa, senão que parece claro que nunca estas ilhas dos Açores foram pegadas com Portugal ou Europa, como tem a primeira opinião. Nem houve em algum tempo ilha Atlântida, nem estas ilhas são parte sua, como a segunda opinião afirma. Mas nem com isso quero obrigar os entendimentos doutros (pois Deus os fez livres) a que entendam o mesmo e digam o que eu digo. Entenda e diga cada um o que quiser, que eu isto entendo e afirmo, enquanto não vejo outras melhores razões que me convençam meu entendimento no que agora disto alcanço saber.

Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, Livro I, (retirado dos capítulos 27º, 28º, 29º, 30º, 31º e 32º)

NOTA: Quero esclarecer que, devido à extensão do texto, me atrevi a retirar dele pequenos trechos que, no seu conjunto, pudessem dar uma ideia, ainda que imperfeita, do pensamento e da posição de Frutuoso face a este assunto.

Para tornar a leitura mais fácil e inteligível, procurei dentro do possível “modernizar” a grafia de certas palavras. Que me sejam perdoadas estas "liberdades".

5 comentários:

Graça Sampaio disse...

E, depois de tudo isto, onde ficam aquelas belíisimas lendas que todos aprendemos e ensinámos sobre as poéticas e diáfanas ilhas dos Açores?

Elisabete disse...

As lendas ficam sempre no nosso coração. E cá para nós, muito em segredo, eu até acredito que a Atlântida existiu mesmo.

Cris disse...

Olá minha querida.
Saudades.
As lendas guardamos em nossos corações,isso é perfeito.
Obrigada pela visita.
Um beijo bem grandão no coração

Elisabete disse...

Cris,
Que bom ter-te de novo!

Ibel disse...

Obrigada por tudo isto, Elisabete!
E Deus queira que a Cris não nos fuja mais.

Estamos de novo, não é Cris?


Beijinhos para as duas.