segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O Fernades da perfumaria

Aquela perfumaria não era bem vista por quem vivia por perto. Para além da frequência da loja ser modesta e para além da mercadoria disponível ser precária, o Fernandes pertencia ao grupo das criaturas que jamais se livram das malhas da má fama e da pouca sorte. Era visto com malevolência por muitas pessoas e mordazmente difamado por outras tantas, até mesmo lá para as bandas dos subúrbios onde morava. Conheciam-no como tendo uma incontida aversão ao clero, que nunca perdia oportunidade de denegrir, tanto na pessoa de qualquer prelado, como na generalidade da classe. Apesar disso, o pobre homem gostava de afirmar que acreditava em santos e demonstrava a sua crença, incorporando Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig van Beethoven, entre os altos dignitários da corte celestial.

O objecto mais precioso que o Fernandes possuía era uma velha grafonola His Master Voice, com uma elegante campânula metálica em forma de tulipa. Esse antigo aparelho, assim como alguns livros contendo obras que ele dizia serem da melhor literatura do romantismo, fora herança de antepassados que tinham sido ricos. Porém, o cabedal desses avoengos diluíra-se no tempo até dar lugar à angustiante penúria em que o neto se via obrigado a viver.

Ouvir os concertos e as sinfonias de Mozart e Beethoven equivalia, para o Fernandes, à vivência de momentos de ascese e a um profundo prazer estético, apesar do ruidoso arranhar da agulha nas estrias das antigas gravações.

Nesses momentos, ele encontrava as únicas oportunidades de se evadir da rotina dos dias passados atrás dos quatro coloridos frascos de perfume. Dias de espera, quantas vezes em vão, pela chegada de clientes. Sentado junto à grafonola estava tranquilo, imaginava sonoridades interiores que reflectiam a emoção causada pelas obras dos grandes compositores. Isso fazia-o sentir a vibração da alma que estava viva lá no fundo de si próprio.

Experimentava, então, a leveza de quem vagueia num fluido etéreo como aquele em que o espírito de Deus terá pairado sobre as águas. Daí, dessas alturas do seu interior, via o Belo a querer atrair o Bem, a querer atrair a Justiça e, mais do que tudo, a querer atrair a Paz. Era como a contemplação do sublime, através dos humildes meios de que dispunha. Isso ajudava-o a tolerar a existência.

A forma de pensar e de sentir do dono da perfumaria provinha de ideias absorvidas na leitura dos livros que herdou. Ele concordava com Guerra Junqueiro, quando o escritor afirma na última das suas “Prosas Dispersas”, que: “O génio do Bem e da Beleza teem a mesma essencia de infinito”(1).

Também não lhe terão sido indiferentes outras afirmações do mesmo autor, feitas ao longo dessas “Prosas”, tais como a comparação do perfil do artista com os perfis do herói e do santo: “…um grande artista ou um grande heroe é um taumaturgo. S. Francisco, Joana d’Arc e Beethoven fazem milagres”(2).

De facto, quem compôs sinfonias como as de Mozart e Beethoven, tem de estar no céu. Mais do que isso, entendia o Fernandes, seres como esses dois génios eram o bastante para justificar a existência do paraíso.

Camilo Castelo Branco, com a descrição que fez da perversa personalidade do arcediago, contribuiu bastante para os fundamentos do laicismo do Fernandes. Apesar disso, também ajudou na definição de conceitos que tenham a ver com a vida celestial: “O céo ganha-se com os voos do espírito”(3), afirmava a bela Maria Elisa, companheira da filha do arcediago. Com tal afirmação, essa personagem camiliana mostrava-se irredutível perante a obsessão da beata D. Angélica que lhe recomendava entrar para o Carmelo, por ser “uma ordem muito apertada e ganha-se o céo, com a pobreza e a paciência”(4).

Ideias pouco ortodoxas sobre questões metafísicas, como as que eram oriundas de determinava literatura ou doutrina, uma vez recreadas pelo dono da perfumaria, em nada favoreciam a imagem dele no meio social daquele tempo. Ora era alvo de insultos, ora vítima de manifestações de desprezo, mas isso não o impedia de expressar com desassombro as próprias convicções. Essa postura libertária fez com que sobre ele se fizessem as mais estranhas conjecturas.

Multiplicaram-se desconfianças fundamentadas no facto do Fernandes pensar de forma diferente do vulgo, ou apenas por ele ser dado a pensamentos. A mais perigosa de todas as suspeitas, que então caíram sobre ele, era a de ser simpatizante do bolchevismo, qual agente secreto a soldo de Moscovo…

Não tardou que o dono da perfumaria passasse a ter, confirmada por toda a cidade, a fama de ser bolchevista. Era como se não houvesse qualquer dúvida a esse respeito. Por isso, a polícia política salazarista, de imediato, se convenceu de que o pobre homem era mesmo um militante revolucionário, um perigoso inimigo do Estado. Logo entenderam que se tratava de um energúmeno que convinha ser mantido debaixo d’olho. _________________________________________________________

(1) Guerra Junqueiro, in “Prosas Dispersas”, Ed. Lello & Irmão, L.da, Porto, 1921. (Foi mantida a ortografia original).

(2) Idem.

(3) Camilo Castelo Branco, in “A Filha do Arcediago”, Ed. Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1905. (Foi mantida a ortografia original).

(4) Idem.

Tomaz Borba Vieira, Noites de Moscovo [O Carcereiro da Vila e outras estórias]

Desenhos do autor

2 comentários:

Graça Sampaio disse...

Belos textos. A nossa literatura é, de facto, muito rica!

E os desenhos estão um mimo!

Elisabete disse...

Os desenhos são do próprio autor.
Gostei muito do livro.
Um abraço