quinta-feira, 17 de abril de 2008

MORREREMOS AMANHÃ

Na minha recente visita a S. Miguel, encontrei o livro MORREREMOS AMANHÃ, de Carlos Tomé. São memórias da Guerra Colonial e as implicações que, ainda hoje tem, nas vidas de quem, directa ou indirectamente, nela esteve envolvido.
Carlos Tomé
Transcrevo aqui um episódio do romance que se assemelha a outro, que eu própria vivi quando, pela primeira, vez estive em Ponta Delgada.
Mais tarde, com os meus alunos do Clube de História da Escola Gaspar Frutuoso, da Ribeira Grande, escrevi à Presidente da Câmara pedindo a colocação duma lápide no local onde Antero de Quental se suicidou, no Campo de S. Francisco.
Constatei, na semana passada, que a autarquia continua a ignorar a frustração de quem, amando Antero de Quental, vê a sua memória esquecida neste local.
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Procuro o banco onde Antero de Quental se suicidou. […] Encontro-o com facilidade. Fica a menos de cinquenta metros da porta da igreja, meio encoberto por uma enorme estátua de Madre Teresa da Anunciada, a iniciadora do culto do Santo Cristo. Acho exageradas as dimensões da estátua, mas não me atrevo a mais pensamentos críticos. As flores ao pé da madre dizem tudo sobre a relatividade do tamanho e, até, da qualidade artística do monumento.
Onde não há uma flor, nem ninguém sentado, é no banco onde Antero pôs termo à vida. Sempre pensei haver aqui uma placa assinalando a data e o trágico evento. Não há. Mais de cem anos depois, o poeta ainda está de castigo por se ter suicidado.
Sento-me. Não sei se este é, exactamente, o mesmo banco. Simples, desconfortável como todos os bancos de jardim, tem aspecto de antigo. É possível. O assento, de madeira, é que deve ser já outro.
Na parede branca, mesmo sobre mim, a palavra “Esperança”, em relevo, chama a atenção. Que fina ironia, se se tratou de um propósito de Antero. Mas, ao mesmo tempo, tanta amargura, tanta desilusão, tanta desistência.
Esforço-me por recordar um soneto do grande poeta. Disse-o algumas vezes, em festas, no liceu, embora os professores o considerassem um pouco derrotista para as mentes jovens. Talvez por isso todos o sabíamos de cor. Eu é que, agora, só consigo recordar o último terceto:
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Abrem-se as portas d’ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!
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Já andei assim, arrastando-me, vergado ao peso do desencanto e da frustração. Em lugar de me matar, liquidei o meu casamento, tornei a vida de Luísa num inferno, perdi amigos. Stress pós-traumático, disseram dois médicos a quem pedia tranquilizantes como se fossem rebuçados. Diagnóstico errado. O que tenho é solidão, uma imensa solidão. Sinto-me só no Estádio da Luz, no meio de sessenta mil pessoas. Tão só quanto estou aqui, no banco onde Antero de Quental pôs à boca um revólver e disparou.
Aqui se suicidou o grande
ANTERO DE QUENTAL
E porque se trata de uma verdadeira pérola, transcrevo também as palavrinhas do nosso querido Daniel de Sá, a respeito da obra e da guerra.
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Quando acaba a guerra? Quando morre o último soldado ou quando é assinado o tratado de paz?... Quando saram as derradeiras feridas ou quando os cegos se adaptam à escuridão e os amputados às próteses?... Quando se esquece o amigo que se viu morrer ou quando vai a enterrar a mãe que o terá amamentado?... Quando, finalmente, se cumpre um desejo do irmão de armas que não voltou?... Ou quando falecem todos os antigos combatentes?...
Este romance de Carlos Tomé é a história da guerra depois da guerra. A que continua na memória dos sobreviventes. Que às vezes têm de suportar uma estranha espécie de remorso por estarem vivos. Com o espírito atormentado depois da tortura dos combates. Um romance escrito numa linguagem que insinua o drama sem insistir nele. Serena e fluida. Bela e límpida. Um hino à paz e um hossana à Língua Portuguesa.
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2 comentários:

Ibel disse...

Que lindo frontispício, Elisabete!
Foi como se um bocado do Delfos tivesse regressado com essa água toda encharcada.Muito obrigada, amiga encantadora!

Também fiquei emocionada com o que li.Então esse é o banco onde Antero se suicidou?
O que a vida nos faz! Como pôde esse homem tão revolucionário e ardente nos anos de ouro da sua juventude ter-se rendido à descrença,à desistência,ao desespero total? Adoro a poesia dele e há poemas que ficam para a vida inteira. O Palácio da Ventura, À Virgem Santíssima, Na mão de Deus,Solemnia Verba são pedaços de lirismo que fixei desde muito nova.
As refexões do Daniel,encaixilhadas nessas interrogações retóricas servem bem de moldura à certeza de que "Morreremos amanhã".
Que pena!
E há tanto mar e tanto deixar...

Elisabete disse...

A fotografia do banco está horrível. Já é antiga. Agora não consegui fotografá-lo porque, das vezes que lá fui, estava sempre coberto da "tralha" usada para fazer as decorações para a festa do Senhor Santo Cristo.
O Antero é uma das minhas paixões. E não só como poeta. A nível político e filosófico está muito perto de mim, ou eu dele.
Sabe? Até acho que o seu suicídio foi um acto de coerência. Mas isso... levar-nos-ia a longas discussões. Amo-o e isso basta, não acha?
Um beijinho