No tesouro da Sé de Angra do Heroísmo há uma curiosa imagem de Santo António com a vestimenta de menino de coro. Os menos avisados surpreendem-se, decerto não suspeitando de que se trata de um ex-voto. E a lenda conta-nos que isto já vem do século XVII, num qualquer dia de festa na catedral.
Um mestre de capela, nervoso porque aquilo tinha de estar tudo nos conformes, zangou-se a valer com um dos meninos do coro, ameaçando bater-lhe. Apavorada, a criança andou a fugir pelas dependências, até que enfiou para as altas torres. Mas não encontrava onde ocultar-se, pelo que subiu as escadas que lhe faltavam para o ponto mais alto da maior das torres, e, sentindo o mestre de capela na peugada, lançou-se.
Terá valido um vento muito especial que tomou o menino do coro nos seus braços, usando-lhe a opa da função, e, passando três ruas, foi depositar o corpo do espavorido no telhado do Convento de Nossa Senhora da Esperança, onde as religiosas o recolheram. O pai, emocionado, mandou fazer a referida imagem e levou-a à Sé. Esteve exposta alguns anos antes de dar entrada no tesouro. No entanto, para o menino do coro estava reservado outro voo, ser padre.
Já agora continuamos no século XVII, exactamente em 1640, na altura da aclamação de D. João IV como novo rei de Portugal. Tendo assistido na capital do reino às referidas solenidades, D. Francisco Ornelas da Câmara, capitão-mor de Vila da Praia, regressou à sua ilha Terceira com a missão de tomar aos espanhóis o Castelo de Angra, que eles ainda retinham em seu poder. Não foi fácil a missão, porque durou 11 meses o cerco e as frequentes batalhas e escaramuças não davam os resultados almejados pelos portugueses. Os espanhóis do castelo passavam privações tais que chegaram a comer ratos. Por fim, houve um acordo de rendição e a bandeira portuguesa foi hasteada no Castelo de Angra, retirando-se os espanhóis. Porém, as intrigas na nova corte já tinham começado, e o marquês de Castelo Rodrigo conseguiu que Ornelas da Câmara e outros fidalgos da Terceira fossem encarcerados. Profundamente cristão, Francisco Ornelas viveu com os seus companheiros as amarguras da prisão. Evocava Deus e oferecia-lhe o seu sacrifício. A sua filha, Emília de Ornelas, também orava. Mas parecia nada resultar, que a sentença foi de morte. Os condenados apelaram para os tribunais da corte. Os debates demoraram dias, pois os juízes achavam os autos pouco claros. Por fim, o Tribunal da Relação de Lisboa ratificou a sentença. No entanto, quando o presidente ia assiná-la, entrou pela janela uma pomba branca, que, voando rente à mesa, voltou o tinteiro, tornando elegível o que estava escrito. Confundidos com o que acabara de suceder, os juízes declararam ter aquilo sido um sinal de Deus. E reescreveram a acta, mas em sentido oposto: a absolvição dos réus. Devoto do Espírito Santo, Ornelas da Câmara prometeu dar todos os anos um grande bodo aos pobres, que ele servia descalço, e edificar aquela Ermida do Espírito Santo, que lá está na Rua dos Quatro Cantos, em Angra. E no seu brasão incluiu o emblema do Senhor.
José Viale Moutinho, Lendas dos Açores
4 comentários:
Mas esta lenda tem os mesmos ingredientes da do galo de Barcelos.
História bonita a do menino nas mãos do vento e a da pomba branca apaziguadora.
Beijinho.
É verdade, Ibel! A intervenção da mão divina para salvar inocentes.
Vá ao Luar de Janeiro. Tem lá um presentinho para si.
Beijinho
Lindas as lendas e os seus blogs. Gosto muito de aqui vir.
Parabéns pelo seu trabalho.
Aprendo muito acerca destas ilhas consigo.
Coisas muito lindas.
Obrigado.
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