quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Única entre todas, e Mulher

“Preciso dela e do seu bem, para que não mais volte a acontecer-me isto de estar como perante a morte e ter o grande medo de morrer sozinho nesta casa. Ou para que o meu amor não envelheça de novo. Porque a gente gasta-se. A gente encosta-se a esta espécie de muros do acaso, apoia neles um ombro, um simples dedo cansado, e pensa:
- Nunca soube, nunca aprendi a namorar esta mulher para toda a vida. Nunca a levei comigo a ver o mar ou o voo das pombas que atravessam as manhãs e tornam o dia claro e profundo de azul.”
Tudo, no seu amor, se alterara já até ao aspecto próximo das nuvens que habitam as casas silenciosas dos velhos, com móveis de pessoas que eles não tivessem conhecido ou fossem ainda mais antigos do que eles. A gente pensa, sabem?, que a nossa carne se foi transformando aos poucos numa simples forma de estar sem imaginação. Por hábito. Como a caca há tantos anos caída na mesma retrete comum. Como a mesa, a cama, o perfil nocturno das ruas que se avista da janela. Pensa tudo. Pensa por exemplo que todas as coisas, e nós nelas, se foram gastando, esvaziando de si mesmas, e não sabe nunca desde quando nem porquê. Pensa que talvez alguém devesse ter chegado e não veio; alguém se esqueceu para sempre de nós a meio de um areal que se transformou em deserto e tem somente o som da nossa voz. […]
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O homem estava pois escrevendo,
- Não sei por que raio me casei com ela, não sei como me aconteceu ter ancorado precisamente nesta casa e não noutra, nestes móveis, nos beijos rápidos dos meninos que me chamam papá, no corpo morno da mulher morena, volumosa e cada vez mais ácida, não sei quase nada a respeito dos meus sonhos perdidos, […]
*
Preciso tanto e tão-só de ti, meu Amor, como no dia em que supus a tua chegada à sala dos professores.
Mas, como sabes, existem também os meses que nem sempre regressam, embora os seus nomes se repitam. Talvez – quem sabe? – o mês de Outubro já não esteja longe, e possa juntar-nos a outros animais docentes, aos seus jogos de mesa, ao cão morto no fundo do estômago que são os almoços pobres, secos e envergonhados. Talvez Outubro, se chegar, torne oportuno o dia em que hei-de conhecer-te pela primeira vez.
Por enquanto, permaneço eu, do lado de cá, amando uma e outra, e todas as mulheres, e admirando daqui a graça, o pudor, a beleza doce daquela que dorme, loira branca e pequena. Tanto a adoro e venero e trago comigo, que a sinto em redor de mim, sempre numerosa e minha, tentando eu multiplicá-la para a poder encontrar em todos os lugares e a todos os momentos.
Quanto a ti, meu Amor, sabes que estou escrevendo um livro.
Sempre que me ponho a escrever-te um livro, começo pela absoluta, repetida necessidade de inventar-te. De repetir-te. De voltar sempre e só a ti. Pássaro e anjo.
Não é verdade, meu Amor, que a principal vocação dos pássaros – e também do anjos – é voar?
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João de Melo, in Entre Pássaro e Anjo

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A Boneca Muda

Criara seis filhos. Sentavam-se à mesa quase sempre com uma fome já de horas, e raramente se levantavam saciados. O costume, em casa de pobres...
Os cinco mais velhos haviam emigrado, a mais nova fora viver para a grande cidade. Envelhecera mais o seu homem. Sozinhos, como no princípio, diziam-lhe as amigas a confortá-la. Não era nada... Teimou em não deixar a sua casa, quando o marido morreu. Mas a insistência da filha, aliada à doença que lhe enfraquecia os ossos e os fazia doer todos, convenceu-a contra a sua própria vontade. Arrastava as pernas e a vida entre o sofá e a janela. Olhando a loucura buliçosa da rua, era como se ela mesma fosse um daqueles manjericos que imitam a grandeza da planície em meio punhado de terra num vaso de plástico.
No primeiro Natal que passou enclausurada no cimento do progresso apressado, quis oferecer uma prenda à neta. Tinha ainda na ponta dos dedos a recordação da agulha e do dedal, e nas memórias da infância as grandes alegrias das pequenas coisas. Quando a filha percebeu que ela estava a fazer uma boneca de trapos, perguntou-lhe com um desdém agressivo: "Para quem é isso?" Com estranheza, porque a pergunta lhe pareceu desnecessária, respondeu: "É para a nossa menina. Para quem é que havia de ser?..."
Ouviu a habitual enxurrada de palavras do mau humor da filha e da sua impaciência. Que estava cada vez pior, que o juízo não tinha conserto, que não havia paciência para sofrer os seus disparates, que não percebia que os tempos tinham mudado... Que era um trabalho inútil, que a neta não ia ligar a um traste daqueles, que mesmo que gostasse da boneca não a deixaria brincar com ela, porque era uma vergonha pois as amigas só iam ter ofertas caras e a sua pequena também, que não era menos do que as outras. O fim da boneca era o lixo, para onde queria levá-la imediatamente.
Nada podia contra o vendaval dos novos tempos que enchia a cabeça da filha. Pediu apenas, numa súplica de submissão: "Deixa-me primeiro acabá-la. Depois, faz o que quiseres". Ouviu uns resmungos de incompreensão mal-humorada, e viu-a sair do quarto batendo a porta.
A filha cumpriu a promessa com que a ameaçara. A bocarra aberta do contentor deixava à vista a boneca sobre aquele excesso de lixo que anunciava o Natal. Uma das diferenças mais evidentes destes outros tempos eram os desperdícios da festa.
Acabara de se pôr à janela, quando viu uma criança recolher a boneca e sacudir algum lixo que se lhe pegara, apertando-a depois ao peito a embalá-la. Ao passar em frente da janela, perguntou-lhe: “Falas com a tua menina?” A pequena olhou-a surpreendida, e respondeu: “Ela não fala!” Com a satisfação de ver que o seu trabalho não fora inútil, disse-lhe: "Não fala, mas ouve." A criança sorriu-lhe, aconchegou a boneca ao peito, e afastou-se falando-lhe ao ouvido, mas de modo que ainda pôde compreender o que ela disse. "Vês...? A senhora não percebeu que te encontrei no lixo. Não vamos dizer a ninguém, para não fazerem pouco de ti. Está bem?..."
Daniel de Sá, in O Deus dos Últimos
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Nota de Daniel de Sá, a que tiro o chapéu.
Não faço parte dos que se entusiasmaram com o Acordo Ortográfico. Por isso, ao rever estes contos, optei por uma espécie de greve de zelo. Retirei todas as palavras abrangidas pelo dito, substituindo-as por sinónimos ou mudando a frase, porque a Língua Portuguesa é maior do que o Acordo e tem soluções para tudo.
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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O Homem Suspenso

Pior do que do sonho ou da evidência da sua casa, um homem pode sentir-se expulso de si mesmo, da sua vida, da certeza de na casa ter vivido uma história verdadeira, o seu caso de amor. Com ele, porém, acontece muito mais do que isso. Um acto de pura e definitiva exclusão; um apagamento dos seus passos, a perda da própria sombra, uma quase solvência do corpo da arte de ser e da sua condição de homem.
O mesmo vento fatídico e acidental o afastou do coração e do desejo de Carminho, assim como do contrato e do tempo daquela que sempre fora uma casa para o entendimento do amor como única salvação. Carminho fora ao tempo de esquecer os ressentimentos que contra ele acumulara ao longo de anos. Para ele, isso significou um recuo ao princípio da memória, até à declaração da sua inexistência. Como se passasse da condição de vivo ao absurdo de nunca ter existido.
Não deve haver pior humilhação do que essa, ver-se um homem excluído de tudo aquilo em que um dia acreditou: a casa, a vida, a certeza daquela suave e descuidada alegria que até então morava no coração da sua mulher. Soube-o com a mesma fria e total evidência: deixara de merecer a atenção e o desejo dela, ia pois começar a morrer.
[…]
Para ela, a única infidelidade seria sempre de outra ordem. Por exemplo, […] O esquecimento de tudo o que entre ambos devia permanecer vivo e essencial. As suas faltas de atenção. […] De resto fora a própria Carminho quem lho dissera vezes sem conta. Saturada das suas íntimas obrigações conjugais. Alegando que ele deixara de ser para ela um marido, para tão-só se refugiar, como um hóspede, na habitação e na ordem da casa. Vivia sob o disfarce de um comportamento em duplo, sem reparar nela, já sem lhe ser afável nem afectuoso […].
Quando na vida de um homem finda a atenção da mulher que durante anos o amou, ele conhece o princípio e o fim do seu próprio mundo, o pânico da morte, o precipício da evidência e da perdição.
Mas não só da casa ela o vinha expulsando. Também do centro convulso e do firmamento turvo e atribulado da sua vida. Saber até que ponto será esse também o apagamento dos seus passos, dos seus longos amados bons sentimentos, de tudo o que aprendeu com o mundo, isso só o tempo o dirá.
João de Melo, O Homem Suspenso [1996]