sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Aguçar o apetite...

Era noite quando João chegou à ilha. Durante o entardecer, fora-lhe avistando o lombo, pão de milho flutuante que crescia de encontro a ele, a levedar de verde escuro. O barco entrou na baía cansadamente feliz, a cidade posta na sua concha luminosa, a rocha do Cantagalo cortada a faca, as muralhas do Castelinho ao lado, guardadoras de outros tempos, de outros piratas, de outras guerras. O Monte Brasil, um monstro afocinhado na água, quieto e negro, do outro lado da baía, com seios de velho vulcão. O barco atracou no Porto das Pipas, há gente sobre, um pequeno magote em bicos de pés, alguns acenos que se trocam, passageiros que descem com a viagem acabada. […]
Álamo Oliveira, Até Hoje (Memória de Cão)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Lendas dos Açores 5

Ali, Faquir e o Pirata Corvino
**************************************
Um olhar para os Açores, exactamente à ilha do Corvo, em pleno século XV.
Havia ali uma mulher solteira que tinha um filho, o que, para a sociedade local de então, era motivo para ser rejeitada. Às vezes, chegava-se ao ponto de obrigarem as mães solteiras a abandonarem a ilha. E no caso desta, atribuíam-lhe mesmo poderes maléficos, chamavam-lhe bruxa. Com tudo isto, se ela sofria, a criança, conforme crescia e ganhava consciência da situação, tornava-se um ser amargo e revoltado. O moço padecia dolorosamente as humilhações por que passava a mãe e sempre também sobravam para ele.
Também, coisa natural naqueles tempos, numa dada altura, a ilha do Corvo foi assaltada por piratas argelinos, que ali iam abastecer-se. O rapaz não quis saber de mais nada, logo aproveitou para se oferecer a acompanhá-los. Era a maneira que encontrava para se livrar da ilha que tão mal o tratara. E depois, como a mãe já morrera, que ficava ali a fazer?
Ilustração: Maurício Abreu
Os piratas argelinos levaram-no e fizeram uma grande viagem, indo depois dar a Tunes, onde o moço corvino foi oferecido a um faquir, mudando-lhe este o nome de Alípio para Ali. O rapaz, com o seu amo e mestre, aprendeu tudo o que pôde, que lá esperto era ele. Não tardou a ter poderes de faquir: via a distâncias incalculáveis, deixava-se cortar pelas finas lâminas sarracenas e, num ápice, ficava curado. No peito, ostentava a tatuagem do pentagrama, demonstrativa da sua autoridade como faquir.
Mas há sempre um mas nestas lendas. E o mas de Ali era que, mesmo sendo um faquir, lhe aborrecia a penitência e o voto de pobreza que lhe cabia cumprir. Por outro lado, bailavam-lhe na cabeça os vexames que com a mãe suportara na ilha do Corvo e queria vingar-se. Como ouvia a voz da mãe dizer-lhe sempre:
- Pobreza não é vileza, mas é um ramo da picardia.
Assim, atingindo a idade adulta, dotado de saberes e poderes invulgares, não hesitou em arranjar tripulação para dois barcos de piratas que passou a comandar. De Larache, onde armara a sua pequena esquadra, Ali saiu para o Corvo. Aí chegado, fundeou perto da baía da praia para os barcos não serem vistos do Corvo, mas reparou neles uma corvina que por ali andava às lapas. E a mulher deu o alarme. E quando os piratas desembarcaram de uma chalupa à entrada da ilha, esta estava tomada pelos corvinos, que lhes lançaram pedras, obrigando-os a fugir para a chalupa. Porém, como se levantasse forte ventania, a embarcação voltou-se, e os piratas, entre os quais Ali, não conseguiram nadar para os barcos, que era difícil e longe, nem regressar à praia, onde os matariam. Desconfiaram de que o comandante os queria entregar aos corvinos e cortaram-lhe o pescoço. Depois, conseguiram salvar-se.A cabeça de Ali foi dar à praia, onde a reconheceram. Enterraram-na na areia, mas todas as noites ela se desenterrava e ululava pelos rochedos. Até que um dia ficou sob a areia para sempre.

José Viale Moutinho, Lendas dos Açores

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Na NATUREZA, tudo se transforma...

Este alfinete de peito, oferecido por amigos,
fica lindamente na lapela dum casaco preto
Quando vivi em S. Miguel, tive ocasião de observar que os açorianos têm uma evidente “queda” para as artes, muita criatividade e grande habilidade manual.
Um exemplo do que afirmo são os belíssimos trabalhos em escama de peixe, que exigem grande minúcia e paciência.
Se bem me lembro… disseram-me na peixaria de Rabo de Peixe (Ribeira Grande), onde muitas vezes me abastecia de excelente (e barato, naquela altura) peixinho, que as escamas mais utilizadas eram as da Veja, um peixe óptimo e colorido, com escamas grandes e de formato singular.
Aqui em casa, tenho apenas estes dois exemplares, mas garanto que há muitos e variados objectos lindos e muitíssimo perfeitos.
Marcador de livros

Mar dos Açores dá prémios

Orcas at sunset
Esta fotografia [*], tirada ao largo da ilha de S. Miguel, valeu ao fotógrafo Nuno Sá o prémio Wildlife Photographer of the Year.
É a primeira vez que um fotógrafo português recebe este prémio, o mais antigo, o maior e o mais prestigiante de fotografia de vida selvagem.
_______________
[*] Aqui, de péssima qualidade, por ser copiado do Jornal de Notícias.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A ILHA

De repente, o mar detém-se. E a ilha defende-se de ser água por detrás dos muros das arribas.
Uma ilha grande, fechada, que durante muito tempo só se abriu para deixar sair gente. A única mensagem de libertação que lhe chegava estava gasta por quase dois mil anos de interpretações acomodadas, salvando os pobres numa redenção de mortos, e garantindo aos ricos a felicidade eterna pelos lugares nos primeiros bancos da igreja e pelas varas do pálio nas procissões anuais. Todo o trigo mirrava com a alforra da avareza, fazendo da fome a padroeira-mor da ilha. Por isso se aceitava a servidão, em nome errado de Deus e pela ordem pobre da pátria, como uma bênção maldita.
João nascera dessa gente que só servia para servir, e crescera neste pedaço de terra, onde o mar suspende um meridiano de água para que a ilha se levante sob um céu de nuvens, fechada no seu cilício de espuma.
Daniel de Sá, Ilha Grande Fechada