Judite Jorge
Nova Iorque, 12 de Setembro de 1947
Querida mãe e restante família,
Oxalá que esta vos vá encontrar de saúde e na forma do costume. Pensar que estou a meio caminho daí e que ainda não é desta que vos vejo! Tinha muita vontade de ir aí, até disse ao Luís, Pois se a gente vai atravessar a América toda, vai mais adiante, vamos aos Açores para eu ver os meus e para tu os conheceres, mas ele respondeu, Sabes que a gente deu agora um balanço grande à vida com a compra da casa e as passagens de avião são caras, a gente para ir de barco é mais o tempo que passa no mar do que em terra com eles, a gente há-de ir para o ano. Ele tinha gosto em vir aqui ao Este ver os sobrinhos, que já não via há muitos anos, e eu tinha gosto em ir ter com vocês, que ainda há mais tempo que não vos vejo, mas não podíamos ter ambos os gostos de uma vez, estamos então aqui agora e, para o ano, por esta altura, havemos de estar aí, assim Deus permita.
Mando estas fotografias que tirámos na viagem. Louvado seja Deus, eu gostava que vocês vissem como esta América é grande e variada. Andámos mais de quatro mil quilómetros para chegar aqui e ainda fomos ver Niagara Falls, são umas quedas de água muito lindas. Amanhã começamos a viagem para trás, que quando chegarmos ainda vamos fazer a mudança de São Francisco para a casa de São José, tem de ser antes de eu voltar ao trabalho.
Muitas saudades para todos
desta que nunca se esquece de vocês
e a todos abraça
Maria
Alto e magro, mas bem constituído, rosto recortado e forte em tez escura, olhos grandes, castanhos e pestanudos, cabelos ondulados a denunciar duas pequenas entradas, não mais do que uma ou outra ruga à volta dos olhos, ninguém diria que ia fazer cinquenta anos.
- Foi uma razão de peso – respondeu a mulher.
Não fosse o cabelo branco e não pareceria mais velha do que ele. De estatura baixa, magra a ponto de parecer frágil, tinha rosto redondo, nariz fino, olhos doces e perspicazes. O cabelo, curto e penteado para trás, deixava-lhe à vista a testa generosa.
- Mas casaste comigo e sou ortodoxo! – retorquiu, admirado.
- Pensando bem, não posso dizer que tenha sido só pela questão da religião que não casei com ele. Quando isso se passou, eu estava acabando de chegar à América, era muito nova, não me quis prender logo. Talvez não me sentisse preparada para dar aquele passo. Contigo foi diferente, a situação era outra. Estava nesta terra há muito tempo, tinha a minha vida organizada, mas, longe dos meus e sem nunca me ter juntado com ninguém, sentia-me sozinha. Tu apareceste, soubeste cativar-me… Só te pus uma condição, a do casamento misto, e tu concordaste logo, prometendo que cada um respeitava a vida religiosa do outro.
- Assim tem sido. Por causa disso, até celebramos duas vezes o Natal e a Páscoa… Diz lá, Maria, alguma vez nos zangámos por causa da religião?
- Eu parece-me mesmo que a gente nunca se zangou.
- Zanga, zanga não foi, mas antes da viagem tivemos aquela diferença de opiniões quanto à casa.
- Eu preferia continuar em São Francisco, mas tu quiseste comprar em São José e lá acabei por te fazer a vontade. Embora, a meu ver, já que não tínhamos o dinheiro todo e foi preciso o empréstimo, pudéssemos ter pedido mais algum e…
- Mas os preços – atalhou ele, acentuando a palavra – não se comparavam.
- Pois tu lá sabes, é que trataste disso, e o que está feito, está feito, não se fala mais no assunto. Mas estou tão habituada a São Francisco que me custa sair de lá…
- Não vais chegar a sentir saudades, é em São Francisco que trabalhas, acabas por ir lá quase todos os dias. Eu é que não… Vendeu-se a barbearia, vou ficar desocupado… Não sei o que é que hei-de fazer para não me sentir inútil.
- Não te preocupes, hás-de entreter-te a tratar do jardim. Quanto à barbearia, não te arrependas, está vendida e o dinheiro que recebeste e mandaste aos teus lá na Grécia há-de ser de bom proveito.
- É como dizes, toda a ajuda que recebam é bem aplicada. Coitados, aquela guerra parece que nunca mais tem fim, estão a passar muito mal. Não estás arrependida de não teres querido parte do dinheiro da venda e de me teres dito que mandasse tudo para a Grécia?
- Não, Luís, não tenho de que me arrependa. Aquela barbearia já era tua antes de eu te conhecer. E, além disso, os meus também passam dificuldades lá no nosso Pico, mas felizmente vivem em paz, vão conseguindo tirar uma coisinha da terra, batatas, inhames, milho, trigo, o principal, e ao mar vão buscar peixe que o há com fartura. Tenho gosto em mandar-lhes algum dinheiro sempre que posso, e sabes que mando duzentos dólares pelo Natal, mas os teus estão em pior situação, fazes bem em ajudá-los.
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Conversavam no apartamento de Susana, sobrinha dele, uma rapariga simpática e roliça, mãe de dois rapazes adolescentes e casada com um grego que Maria não chegou a conhecer por andar embarcado num navio de mercadorias. Era a véspera do regresso à Califórnia e tinham passado o dia a dar as últimas voltas. Primeiro, logo de manhã – Maria não passava que não assistisse à missa dos portugueses -, ele deixara-a à porta da igreja de Santo António. Não entrara, dissera-lhe que ia pôr no correio a carta dela para os Açores e uma, sua, para a Grécia. Apanhara-a uma hora mais tarde no mesmo sítio, trazendo uma surpresa: sanduíches e sumos com que lhe sugeria um piquenique no Central Park. Fascinados e sem pressa, tinham passeado pela luxuriante verdura do parque, comentando como era bom que uma cidade assim, cheia de vidro, cimento e ferro, usufruísse de um tal pulmão. Mais tarde, ao rever a pequena ilha, quase abafada à sombra da Estátua da Liberdade, recordara as suas primeiras horas em terras da América. Ali as passara, em Ellis Island, à espera que os serviços de emigração sentenciassem quem entrava e quem era mandado para trás.
Agora, sozinhos em casa, pois tanto Susana como os sobrinhos ainda estavam fora à hora que chegaram do passeio, não era tarde nem cedo para prepararem o regresso.
- Vou fazer a mala – disse Maria. – Que roupa queres que deixe fora para vestires amanhã?
- Pode ser as calças e a camisa bege – escolheu Luís e depois sentou-se, de mapa na mão, a traçar o itinerário de regresso. – Nova Iorque, Pennsylvania, Ohio, Indiana, Illinois, Iowa, Nebraska, Wyoming, Utah, Nevada, Califórnia… Vamos voltar a passar por estes estados todos…
- Pois sim! – concordou, entusiasmada.
Com ele irá onde for preciso, é o seu único homem, com ele casou há seis anos, com ele pela primeira vez tomou o gosto ao amor e à vida partilhada, com ele, sim, quer atravessar sem desfalecimentos as serras e os desertos que lhes caibam.
Judite Jorge, Afectos de Alma
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Baseado na história verídica de Maria Polley, este foi o primeiro romance de Judite Jorge. Nascida, em 1965, no lugar de Pontas Negras (Ilha do Pico), é jornalista, poetisa e recebeu vários prémios.
Vale a pena continuar a leitura deste romance, que aqui se inicia, numa publicação da Dom Quixote.
4 comentários:
Já li o livro. É muito interessante, humano e de desfecho inesperado.
Como diz, vale a pena ler.
Não conhecia, mas fiquei cheia de curosidade.Apetece-me lê-lo.
Gostei muito, Ibel.
A sensibilidade feminina na história verídica de Maria Polley, uma picarota emigrada nos EUA.
Há tantos mundos a descobrir!
Beijinhos
A Judite Jorge só me surpreendeu a primeira vez. Depois foi só ir constatando que a promessa-certeza era mesmo para não se perder.
Daqui lhe mando um abraço, para o caso de ela dar com estas linhas.
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