sábado, 1 de março de 2008

Homenagem aos Romeiros de S. Miguel

Com um abraço de parabéns, pelo dia de amanhã, a Daniel de Sá, e um pedido de desculpas por truncar o seu belo texto. Quis, apenas, encurtá-lo para caber neste espaço sem se tornar ininteligível. *************************************************
A ilha, toda inteira. Passo a passo há-de João andá-la de ponta a ponta, duzentos e cinquenta quilómetros em redor, cinquenta léguas compridas de cansaços e Ave-Marias, Romeiro, ele, cristão de pouco ir à Missa… E a pão e água, a promessa!...
Pois sim, a guerra… Ainda ela, a guerra, de que pouco mais se sabia do que estatísticas falsas e a voz do Ferreira da Costa que só dava notícias de quem estava bem.
[…]

A tarde vai avançando, e ele sente-se cansado mas não exausto. O pior será, com certeza, depois de o corpo repousar por umas horas e todos os músculos se recusarem a reagir, com a facilidade de hoje, ao esforço da amanhã. Tem à vista o reino da Tronqueira, com o Pico da Vara a apontar o céu, numa oração em silêncio. E parece até que se notam as marcas deixadas pelos imensos dedos do Criador, no acto de modelar a lava de que tudo isto é feito. Se um louco destruísse todos os templos da ilha, restavam-nos as montanhas, que já os deuses antigos por aí é que habitavam…

Desde que João se despediu da mulher com um beijo breve e, dos filhos a bom dormir, com um leve roçar dos lábios nas faces pequenas, doze horas se passaram e andou o rancho coisa de uns trinta quilómetros. Como ali a ilha se amontoa em serras e em cristas enrugadas, não tem espaço para descer suavemente as ravinas abruptas e os caminhos de estoirar cavalos. Vão os romeiros subindo a outra margem da ribeira do Despe-te Que Suas, nome de acertado baptismo para tão íngremes barrancos que a guardam muito funda.
Já no fim da ladeira, uma cruz ao lado da estrada assinala que ali morreu um romeiro, há muito tempo. Foi mudada um pouco mais para baixo do sítio certo, para não incomodar o trânsito, porque todos os ranchos param numa prece por alma daquele irmão de que a maior parte nem conhece o nome. Manuel Viveiros Arruda, digamos que era, porque se sabe que sim. Em Março seria, de mil oitocentos e cinquenta e quatro, o dia de que se guarda tão longínqua memória. Vinha das Sete Cidades, nome mítico da ilha, ou outro nome da ilha, que precedeu, no imaginário medieval, o mais cristão que lhe deram depois da descoberta. Ia meter-se o rancho à subida da encosta, e o pobre homem, convencido de que para tantos seus pecados era pequena a penitência que fazia, pediu licença ao mestre para levar às costas uma pedra que lhe aliviasse a alma por lhe pesar o corpo. O mestre que não, e ele que, em vez disso, carregaria os bordões de todos os irmãos. Subisse em paz, como os outros, que decerto lhe bastava ser bom romeiro e Deus lhe tomaria isso em conta. Sabe-se lá que pecados lhe pesavam na alma – talvez não muitos, porque, às vezes, quem menos peca é que maior pecador se julga -, o certo é que o arrependido penitente se agarrou mesmo a uma pedra do tamanho que lhe pôde o remorso, mais forte do que a resistência do corpo, e foi cair morto de exaustão, e com a consciência lavada pelos últimos suores, ao lado da pedra que deixou tombar quando se lhe acabavam a ladeira, as forças e a vida. E esse romeiro obscuro, que parece ter resistido a toda a subida para morrer mais perto do céu, tem com certeza sempre mais gente a rezar por si, em tempo certo, do que qualquer rei ou qualquer papa.
Chega-se, pois, tarde ao fim, e, com ele, a primeira jornada do rancho, que lentamente se aproxima de Santo António, onde espera a caridade de um cristão acolhimento. João será mandado pelo mestre, logo depois de entregues as crianças, com um romeiro muito mais velho que já fez para cima de uma dúzia de romarias.
Quem os acolhe é pobre, mas tem a mesa posta com fartura, coisa que João nota enquanto saúda “seja louvado nosso Senhor Jesus Cristo”, e ouve a resposta “Seja para sempre louvado com Sua e nossa Mãe Maria Santíssima”. Encosta o bordão à parede, despe o xaile, tira das costas a saca com o pão e a garrafa de água, e deixa pelos ombros o lenço e ao pescoço o terço de contas de lágrimas e cruz de latão, em sinal de que é romeiro. A dona da casa traz uma bacia de água quente com sal, como é costume. João sente vergonha por ter de lavar os pés à vista de estranhos, mas o calor reconfortante da água acalma-lhe um pouco o ardor que lhe sobe deles pelas pernas acima.
Ao sentarem-se à mesa, anuncia que está a pão e água. […]
- Mas, a pão e água, é um sacrifício muito grande. O irmão não vai aguentar.
Havia de aguentar, sim. Por muito pior já passara, e a cruz de guerra de quarta classe era o testemunho desse tal milhão de horrores, porque um diploma assim só se dá a mortos ou aos que o foram quase.
Daniel de Sá, Ilha Grande Fechada

5 comentários:

Daniel de Sá disse...

Elisabete, que linda maneira de começar o dia, sentindo o calor de um coração privilegiado e de uma alma tão nobre!
Obrigado.
Um forte abraço, minha amiga.
Daniel

Ibel disse...

Mas que honra encontrar aqui um texto de um dos melhores escritores das Ilhas Encantadas, no dia do seu aniversário.
Só podia mesmo ter nascido aí.
Do continente para o poeta das ilhas, aqui vai mais um abraço.
Veja se descobre quem sou..

Elisabete disse...

Daniel de Sá,

Eu é que agradeço aquilo que escreve e a sua amizade.
A data saiu errada. Fiz um rascunho para publicar depois da meia-noite, porque no domingo ia para fora. Ficou a data e a hora do rascunho. Lá acrescentei que era para o dia seginte. Percebeu, com certeza, a intenção.
Um abraço

Ibel,
Sempre presente e atenta.
Logo que possa, escrevo.
Um beijo

Daniel de Sá disse...

Creio haver uma certa fidalguia nesta Ibel. Será?
Amiga Elisabete, as fotos são magníficas, mas não sei se a intenção de pôr aquele nicho de Nossa Senhora do Caminhos foi motivada por julgar que se trata da cruz em memória do romeiro morto de exaustão. É que ali está um romeiro, aos pés da Virgem, e por isso se lhe chama Nossa Senhora dos Romeiros. Mas aquilo é antes de chegar à Algarvia, e eu até estive lá no dia da inauguração. O romeiro morreu foi entre a Algarvia e Santo António, no final da subida da ribeira Despe-te-que-Suas.

Elisabete disse...

Daniel de Sá,

Peço desculpa de só agora ter visto o seu comentário.
A Ibel é fidalga, adivinhou!
De facto, não tinha muito a certeza de que fosse o local da morte do romeiro. E confesso que conto sempre consigo para "pôr os pontos nos is". Logo que arranje fotografia, substituo-a.
A outra fotografia é do Miradouro do Despe-te que Suas, não é? Pelo menos, penso que foi lá que a tirei, mas posso estar enganada.
Tenho de fazer uma reportagem fotográfica com a minha nova máquina digital.
Obrigada pelos esclarecimentos que me dá. É um apoio precioso.