quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Nos Açores, com a cal e o basalto

Fui à Ribeira Grande por causa do Niizuma – e deparei com uma cidade lavada pelo mar; igrejas e casario antigo de grandes panos brancos com portais, e janelas e varandas debruadas de basalto; nas fachadas festões e grinaldas, colunas e medalhões, e mais flores, numa profusão barroca e musical, tudo bordado com a mesma pedra escura. Eu andava fascinado com a arquitectura açoriana – como nas ilhas gregas, a brancura entrava-me pelos olhos e persistia até mesmo quando os fechava. Lisboa e Porto deveriam contemplar o asseio destas ruas e destes muros resplandecentes, em vez de cantarem de galo. Mas nem só Ponta Delgada ou Ribeira Grande ou Vila Franca do Campo são senhoras de tal sortilégio, também em Angra a brancura corre para o mar. Só que, na Terceira, a sedução maior é doutra natureza: está naquela costa, entre Praia da Vitória e Monte Brasil, de pequenas casas dependuradas nos rochedos, com muros rasteiros em pedra solta a resguardar do vento umas leiras do tamanhinho duma lágrima. A rudeza que Matias Aires dizia ir bem à arte, vai ainda melhor à paisagem; esta beleza, onde qualquer ornato seria uma ofensa, de tal modo tomou conta de mim, que me passou pela cabeça acabar os dias a podar meia dúzia de videiras enfezadas em Porto Martins ou em Porto Judeu, e a reler o Nemésio, mestre de poesia e de amizade.
"Açores", de Minoru Niizuma, na praia grande do Pópulo
Mas voltemos a S. Miguel. Além da brancura, deveríamos falar destes verdes que nos saltam às canelas por todo o lado, desde os mais tenros de Fra Angelico até esses cor de breu que atormentaram os dias de Greco; deveríamos, se não tivéssemos vergonha na cara: pois quem ousará fazê-lo depois de Raul Brandão? Só me resta virar-me para as vacas, mansas como se não tivessem pontas, fartas de carnes, a alma esguichando pelas tetas – bonitas, graciosas, só as vitelas aos pinotes. O Jacinto, que andou a guardá-las em pequeno, disse-me que são poucas, muito poucas mesmo, as que se abrigam debaixo de telha. Vivem a céu descoberto nos campos de pasto: no inverno, em noites mais hostis, encostam-se umas às outras para dormir, cerradinhas; de verão, se tiverem sorte, suportarão a calma à sombra das criptomérias. Valha-nos o anjo da Ribeira Grande, que eu não posso nada por vós, camaradas!
Mas tenho de regressar ao Niizuma, que não lida com anjos, mas com a pedra vulcânica da ilha. Eu vinha da Lagoa do Fogo e do Salto do Cavalo quando tombei na pedreira da Ribeira Grande. Antes, calhou ter almoçado no restaurante onde o japonês comia. Havia muitas pedras no hall e houve até em tempos uma de Niizuma, entretanto roubada. O dono da casa foi-me falando dele, enquanto o almoço não chegava. Já à vista da pedreira, depara-se com a peça doutro japonês – Diapasão, de Hohnari, em basalto, frente ao mar; será difícil encontrar-lhe melhor enquadramento... quando a pedreira mudar de sítio. Mais adiante estão as esculturas de Niizuma, rodeadas de montões de pedra britada. São três, mas já só duas estão de pé. A outra caiu com os temporais; todos os pedaços estão no local onde tombaram, não será difícil reconstituí-la pelas fotografias existentes. As peças são furadas, para um dia se transformarem em fontes. Pedra, céu e água misturavam-se no pensamento do artista. E como disse o poeta João Miguel Fernandes Jorge, as pedras “estão cortadas segundo conceitos de mensurabilidade e de durabilidade causal que se vão adequar num mundo natural: terra, aves, mar, céu, tempestade”. O actual proprietário da pedreira disse-me que o mestre japonês concebera e criara as esculturas para espaços previamente escolhidos: uma para o aeroporto de Ponta Delgada, as duas restantes para o triângulo de relva junto ao forte de S. Brás, na mesma cidade. De que estão os açorianos à espera para que estes trabalhos ocupem o seu espaço natural, eles que, magnificamente, estão tão próximos da natureza?
Vim aos Açores para ver o Niizuma e, da parte de António Nobre, pôr umas flores no túmulo de Antero: mas regressei a casa de olhos ardidos, como diz o meu poeta, da devastadora beleza das suas ilhas.
Eugénio de Andrade, À Sombra da Memória

5 comentários:

Ibel disse...

O Eugénio, quanto a mim, ainda é melhor na prosa do que na poesia, se é que isso é possível...
Beijinho!

Ibel disse...

O Eugénio, quanto a mim, ainda é melhor na prosa do que na poesia, se é que isso é possível...
Beijinho!

Elisabete disse...

Já pensei o mesmo. Gosto muito da prosa dele.

Mar de Bem disse...

O meu orgulho rebenta, quando percebo o êxtase que as nossas ilhas causam aos espíritos iluminados, como Eugénio de Andrade.

Bem-aventurados somos!

Elisabete disse...

Comentário feito por MARIA no "Luar de Janeiro", por não ter conseguindo pô-lo aqui. Aqui fica, como homenagem a todos os que amam com paixão os Açores:

"Amo os Açores de paixão.
Conheci a Ilha de S. Miguel em Abril de 1969 numa viagem que na época nos deixou a todos nas nuvens.
A digressão teve como finalidade apresentar um espectáculo no Teatro Micaelense.
Viajamos no Paquete Funchal e ficamos alojados, em Ponta Delgada, em dois colégios (um para meninas outro para rapazes) como era normal na época.
Esta minha intervenção não tem nada a ver com o Eugénio de Andrade, mas como encontrei este blogue por acaso e gosto dos Açores apeteceu-me partilhar essa viagem.
Porque os Açores ("As ilhas encantadas", mesmo) e as suas gentes merecem..."