A Promessa do Capitão-Mor
********************************
A última oração depois do jantar em casa do capitão-mor da vila de Santa Cruz da Graciosa foi uma salve-rainha em louvor de Nossa Senhora da Vitória. Nem naquela casa, nem em nenhuma outra se esqueciam da intervenção da Virgem em livrá-los dos piratas que haviam invadido a ilha em 1623. Gil de Quadros Machado, como bom cristão e bom ilhéu, sabia ser agradecido. Estamos no derradeiro sábado de 1669.
A esposa e as duas filhas do capitão-mor – uma era Clélia, a outra, Anunciação – apreciavam a maneira docemente evocadora como ele falava dos seus ancestrais. Finalmente, como um convite a retirarem-se para os seus aposentos, um morcego entrou na sala, pouco incomodado com a mortiça luz das velas. Porém, o morcego perturbou o capitão-mor, que o teve como agoirento.
E não andaria muito longe de se confirmar o que poderia ser tomado por superstição. Gil de Quadros acordou com fortes pancadas na porta de sua casa. Era um soldado que vinha preveni-lo do que se passava. Piratas ingleses haviam desembarcado na Vila da Praia e começavam a atacar a população. A situação era dramática. Por isso, o capitão-mor mandou tocar a rebate e uma vez mais se dirigiu a Nossa Senhora, oferecendo as suas filhas como freiras se Deus livrasse a vila de Santa Cruz dos invasores.
Foto: Maurício Abreu
De facto, depois de arrasarem e roubarem a Vila da Praia, os piratas voltaram a embarcar e seguiram para outra ilha. E logo Gil de Quadros comunicou às filhas o voto que fizera, e, embora elas ficassem chorosas, inconsoláveis, enclausurou-as no Convento dos Capuchinhos de Angra. Ao contrário de Clélia, mais doce e passiva, Anunciação irritou-se com a decisão paterna. Gostava da sua ilha e da vida secular para se deixar assim meter num convento. A clausura era para ela algo verdadeiramente penoso. Ora, a madre abadessa, que era tia das irmãs, tinha uma visão diferente da vida e era de opinião que para um convento só deve ir quem tiver vocação. Assim, não foram poucas as cartas que enviou ao seu irmão Gil, observando que as sobrinhas não tinham vocação para aquela vida. Porém, o capitão-mor, embora sofresse com a subtracção, procurava manter-se fiel ao voto formulado numa hora de aflição.
E assim, na Sexta-Feira Santa seguinte, ajoelhado ante a imagem e Nossa Senhora da Ajuda para que o ajudasse, ouviu uma voz dentro de si que lhe dizia:
- O Senhor compadece-se de ti, meu filho. Por isso, concede-te que te desligues do teu voto. O seu sinal será o pousar de duas pombas brancas nas hastes da cruz do porto da barra ao nascer do Sol de Quinta-Feira da Ascensão.
Gil de Quadros soube esperar o sinal, e no dealbar do referido dia ali estava o capitão-mor olhando a cruz, à espera do sinal do Senhor. E duas pombas brancas foram pousar no sítio anunciado. E nesse mesmo dia, com o coração cheio de felicidade, ele foi a Angra buscar as filhas ao convento.
José Viale Moutinho, Lendas dos Açores
2 comentários:
Esta lenda comoveu-me... Mas também me fez lembrar de Ifigénia sacrificada pelo pai para obter bons ventos... Os pais que acham que têm o direito de sacrificar as filhas... :(
Isso era muito comum noutros tempos... Mas será que já não acontece?
Enviar um comentário