terça-feira, 12 de maio de 2009

Furnas... 1924

Vale das Furnas visto do Pico do Ferro
Lagoa das Furnas
6 de Agosto de 1924
Atravesso a Chada das Furnas, região desolada, até se me deparar pela frente o espinhaço disforme da serra do Trigo. Desço as Pedras do Galego e abre-se diante de mim, entre contrafortes temerosos, o esplêndido vale das Furnas. É uma bacia rodeada de montes – o Pico do Bode, a Lagoa Seca, o Pico do Ferro, o Pico do Cavaleiro. No fundo da cratera, casinhas escondidas na verdura e um grande contraste entre os contrafortes cor de lousa e alguns campinhos de milho muito tenro por onde apetece passas a mão, acariciando-os; entre a bacia cheia de árvores e de água, com o vulcão canalizado e reduzido a alguns penachos de fumo, que saem de muros redondos de resguardo, e as grandes serrar que ele vomitou e produziu. Agora, está ali só para nos dar alguma inquietação – para a volúpia ser maior… Sob a crosta que calcamos, e que terá alguns metros de espessura, o inferno, naturalmente, continua: basta escavar na terra com a ponta da bengala para abrir uma chaminé.
Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas
Caldeira e fumarolas

9 comentários:

Ibel disse...

Que beleza de texto e de imagens.
Ainda be que voltaste.Já custa passar sem ti.
E o João coelho onde anda?
João!!!!!!!

Elisabete disse...

É. Isto dos blogues cria dependência...
Os comentadores é que estão quase a "chumbar por faltas".
Abraços

joão coelho disse...

Presente, sras. Professoras!
As Furnas..Há 50 anos, uma ida ao vale era uma mistura de excitação e de algum receio.
Gozo pela viagem - era ir longe, quase 50 kms..- e arrepio pela passagem em alguns troços do percurso.
Saía-se de manhã cedo, em camionetas de passageiros, em excursão organizada pela Escola Industrial, a miudagem mais alguns professores e contínuos, com farnel para comer junto à lagoa, lá se ia, ronronadamente, a tensão surgia quando se assomava à descida do Pisão, ao tempo uma longa ladeira de terra batida,com inclinação pronunciada e curvas com aperto, o coração nas mãos até se chegar lá abaixo a Água d'Alto com a sua bela praia, a seguir vinha Água de Pau, ocasião para - esperando que a mecânica da viatura se portasse bem, evitando paragens - se perguntar da janela aos locais "se foi aqui?", coisa que os punha fora de si (dizia-se que o dono de uma porca, com casa junto a uma colina, viu desaparecer o animal; depois de o procurar deu com ele no outro lado do morro..e presumiu que a porquita tinha furado o terreno até sair do outro lado. A pergunta completa era "se foi aqui que a porca furou o pico?", mas bastava dizer "se foi aqui" para arranjar confusão).
Passado mais um tempo chegava-se à margem da lagoa das Furnas e aí era escolher o local para a refeição, manta no chão, pão com chouriço, torresmo ou atum, um pirolito de berlinde, e ambiente geral perfumado com o odor a enxofre das caldeiras. Rezava-se para que não chovesse, visitavam-se as caldeiras, bebia-se água das nascentes - a ferrosa e as outras, ajudava à digestão -via-se a Procissão, se fosse Domingo de Ramos, e ála bote, de regresso à cidade. Vinha-se pelo sul, voltava-se pelo norte; outro problema,subir as Pedras do Galego, mais uma estrada manhosa, também de terra, a camioneta a arfar, curvas apertadas, tudo caladinho, até se chegar cá acima, suspirava-se de descompressão e ia-se ao miradouro do Pico de Ferro ver a lagoa, serena e majestosa. Mais um bom bocado e passava-se na Ribeira Grande, por vezes parava-se junto ao Jardim (do Paraíso, se não erro) os mais velhos, contínuos e professores aproveitavam, iam ao Jaime Balão comer uns canarinhos fritos e beber um "meiozinho" de vinho de cheiro, as senhoras iam ao café Pascoal - uma dama não entrava numa tasca, por muito reputada que fosse a taberna, como era o caso do Balão - e partia-se para Ponta Delgada, o fim da viagem aproximava-se e a tristeza por ver terminar um dia de aventuras também.
O último arranque, ou a última manifestação colectiva da miudagem para celebrar o passeio, era assomar às janelas e cantar, quando a camioneta entrava no miolo da cidade, ali por altura da freguesia de S.Pedro, uma cançonetazita que (ainda me lembro) dizia assim: "Acabou-se, amor, acabou-se..acabou-se a nossa alegria..
Tenho pai, tenho mãe, tenho tudo, menos o amor da Maria.."
Gritava-se com força, repetidamente,para dar nas vistas, para que os transeuntes vissem bem que era uma excursão da Escola Industrial que ali ia, nada a ver com os "zabelas" (maricas) do Liceu - e que terminava um feito: uma ida às Furna, num Domingo de um qualquer ano dos idos de 50, no século passado.

Beijos e abraços

Elisabete disse...

Valeu a pena a espera. Obrigada, João!

joão coelho disse...

Falta "Furnas, parte 2"..Logo que puder volto com mais conversa..e não tens que agradecer.

Dica disse...

Parabéns Elisabete,pelo escritor que nos trazes e pelas imagens que o «escutam».A Lagoa das Furnas é um assombro.
Os Açores são divinos.

Ibel disse...

Obrigada,João.Fico à espera do resto.
Em Agosto estarei nos Açores, se Deus quiser.
Abraços

joão coelho disse...

As Furnas, como as Sete Cidades, não tinham para nós, jovens mancebos dos anos 60, nenhum atractivo especial, enquanto paisagem: estavam lá desde sempre, desde que tínhamos memória delas, faziam parte do casulo que nos envolvia enquanto crescíamos. Divertíamo-nos levando os poucos forasteiros que apareciam em P.Delgada até à vista do Rei ou ao Pico do Ferro, vendando-lhes os olhos e conduzindo-os assim até ao limite do miradouro, para depois apanharem com a visão das lagoas em cheio, sem preâmbulos.
De resto, serviam-nos como locais de lazer - nas Sete Cidades acampava-se na baía do silêncio ou na peninsula - numa ocasião, levou-se uma lagosta e uma boa alma, para que ela ficasse fresquinha,meteu-a dentro d'água,presa por um cordel, claro que estragou o petisco, a carne do bicho ficou doce, intragável..- ia-se à velha loja do "manco" comprar abastecimentos, comia-se, bebia-se, dava-se a volta à cumieira, e dormia-se. Uma vez por outra, fazia-se a viagem a pé, da cidade até à vista do Rei, saía-se de madrugada para apanhar o nascer do sol lá em cima, outras vezes em carro de aluguer, aproveitando para apanhar coelhos na estrada, os bichos ficavam encandeados pelos faróis e paravam, alguém ia junto do pobre e dava-lhe a pancadinha da praxe atrás das orelhas, estava garantido um petisco extra, e de borla..
Tal como nas Furnas, a descida era manhosa, estrada de terra, com algumas curvas em gancho, por vezes o nevoeiro aparecia, não se via um boi à frente do nariz - e eles (e suas consortes, as vacas) andavam lá na estrada, ouvíamos primeiro os "transistores" (os chocalhos presos ao pescoço) e só depois é que dávamos por eles..
Tanto nas Sete Cidades como nas Furnas, ninguém nadava,dizia-se que havia muitas algas nas águas, e muito densas, quanto mais se tentasse fugir, mais se ficava preso..e todos sabíamos da história de um turista que lá morrera, verdade ou mentira não sei, a verdade é que ninguém arriscava e embora nadássemos bem, ali ou nas Furnas, molhava-se o pézinho e prontos..
Nas Furnas havia outros atractivos, mais casas, mais gente, o hotel e o casino; telefonava-se a um amigo que vivia no vale para tratar do cozido, no minimo 7 horas com a panela metida no buraco para a coisa apurar, enquanto se esperava ia-se às Termas, corpo metido na banheira cheia de água ferrosa, pulseiras e anéis de prata ficavam tudo castanho..ah, estou-me consolando.. deixa-te estar que estás bem, saía-se de lá com uma sensação de leveza mais forte que a tal de insustentável do Kundera, recomendo a toda a gente..Depois do cozido, passeiozinho no parque Terra Nostra, mais lá pró fim da tarde uma passagem pela piscina de água ferrosa, de novo as pratas a mudar de cor,fazia-se o tempo até ao jantar com os restos do cozido - e depois a melhor cena - ir até às caldeiras,a de Pero Botelho a mais sinistra, silêncio só quebrado pelo "canto", gutural, da terra, então no jardim sobranceiro aos buracos borbulhantes era como que uma passagem a outra dimensão, o vapor no ar, o cheiro a enxofre, se se juntava um pouco de neblina era quase o nirvana, a cabeça viajava sem portagem, os amores, lindos de morrer, que iriam ou não chegar, a guerra que já assombrava com os primeiros mortos divulgados no "placard" do "Diário dos Açores", as palavras a preto.."Noticias recebidas ontem nesta cidade informam que faleceu em combate na provincia da Guiné, o furriel miliciano fulano de tal.." porra, temos 17 ou 18 anos, será que ainda vamos levar com esta merda..? Verdade é que dos 4 que erámos nessa altura, 3 foram lá, eu safei-me por pura sorte, felizmente regressaram bem e de corpo inteiro..
De vez em quando,no Verão, o Casino do Hotel Terra Nostra abria, para "soirée" dançante, música ao vivo pelo conjunto de Teófilo Frazão, ou pelo "Duo Capicua" - formado pelo Manuel António e pelo António Manuel, nossos colegas na Escola Industrial, quando tocavam o "Muxima" ou as melodias, lentas e sentidas, dos cantantes italianos da época era um corropio atrás das damas,os camaradas do conjunto preveniam os mais chegados "João, na segunda série, vamos tocar isto ou aquilo, um slowzinho à maneira..", a gente punha-se a pau, marcava-se a sequência à distância, os dedos a falar com a menina que já estava debaixo d'olho, de volta vinha um aceno de assentimento com a cabeça, deixávamos os de fora andar aos saltos com elas nos rocks e nos sambas, quando se reatava a dança para a tal sequência, os pobres candidatos, que não nós, ouviam as pequenas dizer com o seu melhor ar "desculpe, mas já estou comprometida para este número..", ai, ter uma mulher nos braços,o entrelaçar das mãos, o toque da pele,será que deixa encostar a face.?..as meninas mais esquivas com o cotovelo enfiado no ombro do cavalheiro, nada de confianças.. tempos desgraçados de segregação dos sexos..
Pessoalmente, no entanto, as lagoas que mais me impressionavam eram a do Fogo e a do Congro - a primeira pela sua serenidade absoluta, só nós, a natureza e o canto das gaivotas - Nemésio dizia que ali o silêncio fazia parte da paisagem - e a sensação, definitiva,de estar num lugar especial,único, quando desci até lá abaixo..
A outra, a do Congro,pouco conhecida até por ter acesso reservado, (era necessário pedir a chave de um portão de acesso ao local, não sei se ainda é assim),marcava a diferença porque tinha a água completamente coberta por nenúfares - chamavam-lhe também lagoa dos nenúfares - dando a ideia de que se poderia "caminhar" de uma margem para a outra..Anos mais tarde, depois do grande terramoto de 1980, na Terceira, começou a falar-se na possibilidade de ocorrência de um grande sismo em S.Miguel - de uma dimensão que podia provocar uma fractura na ilha, com origem exactamente na zona da lagoa do Congro. O que lhe veio dar uma outra auréola mais sinistra, felizmente sem concretização até hoje.

Beijos e abraços

PS - Com a sensibilidade que evidencias através dos teus belos poemas, vais ficar "apanhada" pelos Açores, Ibel..Tal como aconteceu com a Elisabete.
E vais aturar-me aqui, com indicações várias para lugares a ver e a sentir..

Elisabete disse...

Obrigada pela vossa querida presença, amigos!
João, estas memórias são uma delícia!!!...