quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

URBANO BETTENCOURT e o gosto das palavras

Às vezes, dá-me saudades dos anos sessenta. E não será tanto a vaga nostalgia dessa "adolescência que nunca ninguém tem a não ser quando a relê num livro" (como escreve Joaquim Manuel Magalhães num belíssimo poema) e nem talvez num qualquer sentimento de desencanto de quem perdeu as flores que Scott McKenzie nos pusera nos cabelos antes de entrarmos em San Francisco, de cujos caminhos acabámos, aliás, por desviar-nos, sem nunca lá termos chegado. Não, não será por isso que às vezes sabe bem olhar para trás e, nessa pausa do tempo, recuperar algum do apaziguamento interior, da ingenuidade mesmo, que os anos foram transtornando e subvertendo até; aquilo que continua a chamar-me, nesse regresso, será muito mais a possibilidade de confrontar-me, trinta anos depois, com a pura sensação de quem vê as suas próprias palavras estampadas em letra de forma nas páginas dos jornais. E aqui, sim, poderá insinuar-se a nostalgia pelo tempo de um olhar optimista sobre a imprensa e que talvez fosse, afinal, o sinal de uma confiança mais vasta, de uma crença na possibilidade de transformação do gosto, da vontade e do desejo; é decerto a limpidez desse olhar antigo que me atrai ainda, sobretudo quando em confronto com alguma perversidade que se atravessa no meu olhar de hoje sobre a imprensa, os seus jogos, o seu tédio.
Urbano Bettencourt, "O Gosto das Palavras III"
**************
Urbano Bettencourt nasceu na Piedade, Ilha do Pico, em 1949. Frequentou o Seminário de Angra, que abandonou, vindo posteriormente a licenciar-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, depois de uma experiência de dois anos de guerra colonial na Guiné-Bissau. Professor do Ensino Secundário na margem sul do Tejo e em Ponta Delgada e, desde 1990, Assistente Convidado da Universidade dos Açores, onde tem leccionado Literatura Portuguesa Clássica, Estudos Literários e Literatura Açoriana. Tem colaboração dispersa por jornais, revistas, rádio e televisão, para a última das quais adaptou, com José Medeiros, o romance Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. Algumas obras: Raiz de Mágoa (poesia); Ilhas (narrativas), de parceria com Santos Barros; Marinheiro com residência fixa (poesia, narrativas); O Gosto das Palavras I, II e III(ensaios); Naufrágios Inscrições (poesia, narrativas); Emigração e Literatura (ensaio); Algumas das Cidades (poesia, narrativas).

Sem comentários: