segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Poesia de Natália Correia

Natália Correia
[S. Miguel, 13.Set.1923 - Lisboa, 16.Mar.1993]

Queixa das almas jovens censuradas

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Dão-nos um lírio e um canivete

e uma alma para ir à escola

mais um letreiro que promete

raízes, hastes e corola

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Dão-nos um mapa imaginário

que tem a forma de uma cidade

mais um relógio e um calendário

onde não vem a nossa idade

***

Dão-nos a honra de manequim

para dar corda à nossa ausência.

Dão-nos um prémio de ser assim

sem pecado e sem inocência

***

Dão-nos um barco e um chapéu

para tirarmos o retrato

Dão-nos bilhetes para o céu

levado à cena num teatro

***

Penteiam-nos os crânios ermos

com as cabeleiras dos avós

para jamais nos parecermos

connosco quando estamos sós

***

Dão-nos um bolo que é a história

da nossa historia sem enredo

e não nos soa na memória

outra palavra para o medo

***

Temos fantasmas tão educados

que adormecemos no seu ombro

somos vazios despovoados

de personagens de assombro

***

Dão-nos a capa do evangelho

e um pacote de tabaco

dão-nos um pente e um espelho

pra pentearmos um macaco

***

Dão-nos um cravo preso à cabeça

e uma cabeça presa à cintura

para que o corpo não pareça

a forma da alma que o procura

***

Dão-nos um esquife feito de ferro

com embutidos de diamante

para organizar já o enterro

do nosso corpo mais adiante

***

Dão-nos um nome e um jornal

um avião e um violino

mas não nos dão o animal

que espeta os cornos no destino

***

Dão-nos marujos de papelão

com carimbo no passaporte

por isso a nossa dimensão

não é a vida, nem é a morte

(Poesia musicada e cantada, magistralmente, por José Mário Branco)

2 comentários:

Ibel disse...

Ontem declamei um poema de Natália Correia.Hoje abro o seu blog , depois de uma noite de insónia, e vou lendo e cantando.
Este é daqueles poemas que dá gosto interpretar com os alunos.A primeira reacção é de que não perceberam nada, depois é a surpresa e o espanto.
Beijinho.

Elisabete disse...

Pois. É um belo poema e adoro ouvi-lo pelo José Mário Branco, quase sempre com a lágrima ao canto do olho.
Mais uma coincidência... não é?