terça-feira, 2 de junho de 2009

A D. Otília

D. Otília vivia na estratosfera da Arte, sempre alheada das cruéis realidades que a circundavam. A vizinhança não a entendia. Jamais podia entendê-la. D. Otília conhecia meio mundo e falava com conhecimento bem documentado de museus, teatros e óperas das principais capitais europeias. O pai tinha sido rico e a filha, embora marcada com o estigma da ilegitimidade, acompanhou-o em inúmeras viagens e prolongadas estadas no estrangeiro. Frequentou meios de requinte social e exigente etiqueta, assim como os melhores colégios e mestres de música.
O meu avô apreciava muito receber D. Otília no terno de sala ao ar livre e até lhe perdoou o buraco que fez com a brasa do cigarro no assento do sofá. A pianista fumava, sem parar, um tabaco violento e barato que fazia tossir quem andasse por perto. Era a única mulher da aldeia que fumava cigarros de homem. D. Floriberta só consumia marcas caras e aromáticas. Entenderam as janeleiras que se ambas fumavam mereciam igualmente suspeitas das mesmas irregularidades morais. “Umas meretrizes”, gritava D. Beatriz mouca supondo que falava baixo, em confidência para a janela ao lado. A pianista, lá no planeta mítico que habitava, jamais se deu conta da crueldade que dominava o mundo das vizinhas.
ilustração de Luís França
Quando D. Otília decidia passar serões ao ar livre no sofá do meu avô, o velho Manuel Mentiroso deliciava-se com as vibrantes descrições de viagens e de acontecimentos que incluíam curiosas personalidades, assim como gente ilustre que ela conhecera durante os agitados tempos que separaram as duas guerras mundiais.
A pianista da nossa aldeia ora passava longos serões ao ar livre no sofá do meu avô, que se prolongavam até de madrugada, ora andava deprimida, com um olhar vago que não focava nada nem via ninguém. Passava temporadas de solidão como se vivesse numa ilha deserta no meio da aldeia. Tudo quanto o pai lhe tinha deixado em herança guardada no sigilo de bancos londrinos, foi transformado em material de guerra quando o governo britânico confiscou as reservas bancárias para suportar o combate final à fúria de Hitler. Sobrou-lhe apenas a humilde casa da mãe, o relógio e os anéis do pai! Empenhava ou vendia aos poucos, o pouco que tinha. As lições de piano não a sustentavam porque tinha sempre muito poucos alunos. Não tolerava os menos dotados e abominava que se tocasse sem alma, sem talento. As meninas de sensibilidade menos apurada eram postas na rua aos gritos de “vá para casa remendar as peúgas”, porque entendia que “a música não é para cabeças ocas nem para sentimentos empedernidos como calhaus”. Muito poucos alunos resistiam aos vendavais do temperamento da D. Otília. Por vezes, até aqueles que ela considerava talentosos desapareciam em pânico. Depois, sobravam as carências, a fome rondava, entrava e instalava-se na casa dela. Porém, nem nas crises mais prolongadas a pianista aceitava ajuda de quem quer que fosse. Podia não ter mais nada para além da dignidade, mas dela não abdicava. Transformava em esmola para os pedintes qualquer oferta que lhe fosse dada, mesmo que o retrato da fome lhe viesse estampado na cara. Se era convidada para comer em casa de vizinhos, exibia uma bizarra cerimónia, servindo-se de quantidades mínimas das quais ainda deixava sobras. Tinha um olhar altivo, distante, que nos reduzia à sensação de pertencermos a uma escala menor.
Havia na atmosfera da aldeia como que uma compacta força suspensa, algo de estranho que nos roçava pela alma, apertava na garganta e eriçava a pele, quando a pianista abria a madrugada através dos ascendentes acordes de um Nocturno do “seu” Chopin. Para a ouvir clandestino, eu saía da cama e escondia-me no vão da porta ao lado da casa dela. Julguei que a minha presença tinha sido pressentida ou descoberta quando, mais tarde, tive a sensação de que me eram dedicadas algumas das maravilhosas sonatas românticas a que a artista se entregava, em êxtase. Apaixonei-me pela música. Andava sempre dentro do raio de acção sonora do piano da vizinha. Escutava as lições, suportava o martelar dos exercícios de principiantes e temia as explosões de cólera contra meninas lavadas em lágrimas, que eram expulsas sem piedade, para o “olho da rua”. Porém, nada demoveu as intenções que entretanto me tinham nascido cá dentro e acabei por dar comigo a suplicar, “ó mãe, peça à vizinha Otília para me ensinar a tocar piano”. Como o meu pai discordou com enorme arrogância, porque “o que ele precisa é trabalhar”, logo a minha mãe entendeu contrariá-lo, por rotina. Acedeu ao meu pedido com a melhor prontidão e foi falar à pianista. Ficou apalavrado o dia e a hora da primeira lição.
Vivi ansioso a espera pela oportunidade de ter a sensação de me sentar ao piano. Qualquer um vivia sugestionado por imagens das fitas de cinema como aquelas em que o galã, no mais premente momento do clímax sentimental, abandonava a actriz, cuja esbelta cintura tinha entre mãos, para se sentar ao piano e dedicar-lhe uma serenata. […]
A professora de piano não me deixou sentar frente ao teclado, no banquinho mecânico que gemia quando se rodavam os dois manípulos que lhe regulavam a altura. Eu tinha sonhado atribuir ao momento em que me sentasse pela primeira vez ao piano o significado dum decisivo passo para a consagração. Sentou-se ela e manteve-me a uma certa distância. Ensinou-me as notas “dó, ré, mi” e… por aí adiante. Tive de as cantar avulsas à medida que ela as fazia sair vibrantes, pelo piano fora. Eu não conseguia evitar a troca de “dós” com “fás” e o desapontamento estava escrito na cara da vizinha pianista que sentenciou, “musicalmente disléxico!” Aproximei-me um pouco para saber o que isso queria dizer e apoiei a mão na tampa do piano de meia cauda. D. Otília não queria acreditar no desaforo. As sobrancelhas pintadas a azul subiram-lhe de espanto, até ao cimo da altiva testa franzida com rugas de tempestade. Levantou-se e gritou, possessa, “tira já as mãos de cima do meu marido”. Fiquei petrificado sem ver nenhum marido, até reparar que estava com a mão colada naquele monstro preto que se arreganhava para rir de mim, exibindo a enorme dentadura branca voltada para a possessiva esposa. Corri escada abaixo e corri rua fora cheio de vergonha com o escândalo que a gritaria ia provocar na aldeia. Foi uma zanga ainda pior do que as zangas rotineiras que D. Otília tinha contra meninas destituídas de talento. Era evidente que no seguimento deste fiasco público, eu passava a ter o rótulo de ser o maior insucesso pedagógico da pianista da aldeia.
Tomaz Borba Vieira, Herdar Estrelas

8 comentários:

joão coelho disse...

Obrigado Elisabete. Este era o livro que procurava na Feira, a par do outro do Emanuel Jorge Botelho. Porque ambos têm a ver com crónicas traçadas à volta da vida em S.Miguel.
Agradeço esta mostra da tua sensibilidade.

Elisabete disse...

O do Emanuel Jorge Botelho, infelizmente, não tenho. Este Herdar Estrelas comprei-o, em Ponta Delgada, em Novembro de 2003.
Pude, assim, fazer-te esta surpresa. Pena não teres encontrado...

almariada disse...

Excelente! Obrigada. Bem haja.

joão coelho disse...

Faço notar que o Genuíno Madruga chega sábado, cerca das 13H, hora local, às Lajes do Pico, completando a sua viagem em solitário à volta do mundo, via Cabo Horn. Como já referi aqui, é o primeiro português a fazê-lo. Já vi que a RTP-Açores e a RTP Internacional vão transmitir em directo a chegada. Estúpidamente, parece não estar previsto que o canal 1 se junte à transmissão, o que daria a dimensão merecida ao G.Madruga e nos proporcionaria a nós, portugueses do continente, a possibilidade de participarmos num momento único. Porque a D.Informação da RTP não tem contactos disponíveis no sitio da televisão pública, enviei mensagem ao Provedor, em forma de sugestão, a ver se ele sensibiliza os "cérebros" da nossa TV...

Ibel disse...

Este texto foi-meenviado pela Margarida Madruga.Merece ser lido.
Beijos para todos.


Genuíno, meu rico primo Genuino


Quase na curva da estrada, ali no PALMO do GATO, entre as duas companhias, a de CIMA e a de BAIXO, isto é a meio da freguesia de S. JOÃO, num dia de inverno, 9 de Dezembro de 1950, ano Mariano, nasce este meu primo que agora vos apresento.

Genuino é o segundo filho, o primeiro do sexo masculino, de Maria da Conceição Goulart Madruga que casou aos 17 anos com Alexandre do Amaral Madruga, irmão de meu Pai.

A nossa avó paterna morreu de parto do 8º filho e dividiram seus filhos entre os parentes de S.João e das Bandeiras. Foi um castigo para aqueles meninos, que cresceram e se formaram a partir de todas as dores e saudades que a Vida lhes enviou. Foram forjados com uma têmpera de aço!

Tio Alexandre e meu Pai eram... tão próximos -13 meses de diferença de idades!!! (era vê-los já idosos ao lado um do outro fazendo coisas em conjunto e não falavam. Não precisavam de falar, tão unidos eles eram). Casaram no mesmo ano de 1943.


...e a vida deu as voltas que tinha de dar...


Genuino era um menino rebitez. Louro, magrito e rijo, cheio de certezas, tão engraçado que ele era! E levava sempre a sua àvante. Era como ele queria. Mas ele era esperto, muito esperto: sabia sempre o que queria e como queria. Nunca exigiu impossíveis. Tinha a noção exacta do que exigia. Deixava-nos andar no seu triciclo em troca sempre de algo. Se não houvesse troca que lhe agradasse, de certeza não emprestaria o seu triciclo.
...e isto com 5 anos de idade!!!

Desde cedo se evidenciaram nele as competências para o arrojo e aventura calculada. O medo nunca se gerou naquela cabeça de rapaz do Pico, que acima de tudo tinha que experimentar, para tirar conclusões. Foi assim que, numa das suas experiências, rebentou uma garrafa de gás... que não teve conclusões desastrosas, sabe-se lá porquê!

Porque era preciso estudar (!), dei-lhe explicações de Geometria Descritiva. Tinha um talento especial para as noções da geometria no espaço.
Apesar de toda a sua capacidade e inteligência, num dia de primavera de 1969, Genuíno diz-me: “Margarida, não vale a pena dares-me mais explicações. Vou desistir de estudar. VOU DEDICAR-ME À PESCA!!!” . Acabara de fazer 18 anos !

de Bem Madruga

Ibel disse...

.Na sua primeira viagem à volta do mundo, Genuíno foi à procura de si mesmo, dos seus desafios, das suas capacidades que ele sempre quer ilimitadas, porque não há limites para os seus próprios desafios e também à descoberta de tantos e tantas coisas que o mar seu companheiro lhe foi presenteando.
Nesta segunda viagem ele quis levar as nossas ilhas em peregrinação, nesta circum-navegação, levando já outros compromissos a que ele se propôs. Como se ele fosse em procissão levando o “Santo Graal”, apesar de só, nunca deixou de cumprir o paradigma do sonho de Portugal: cumprir o Mar, cumprir Portugal, “dar novos mundos ao mundo”, cumprir o V IMPÉRIO que Fernando Pessoa sonhou e apregoou como o grande FADO, como o DESTINO SAGRADO e extraordinário deste nosso PORTUGAL. Genuíno foi cumprir o grande sonho de qualquer Português, que se revê nesta façanha. E Genuíno cumpriu.

Como qualquer HOMEM de BRAVURA, quando as coisas não correm de feição é que se percebe a sua CORAGEM, TÊMPERA, ESTOICISMO e RENÚNCIA a facilidades. Ele enfrenta a adversidade com uma TENACIDADE e DIGNIDADE próprias apenas de GENTE ILUMINADA, de gente de “antes quebrar que torcer”. Não é fácil para ele esta adversidade quase no fim da jornada, quando já sentia “areias de Portugal”... E não cumprir uma promessa (chegar pelo “Espírito Santo”) é uma desolação. A PALAVRA é para cumprir, doa a quem doer. Mas ele não se resignou, continua batalhando. Ele quer chegar, ele tem que chegar! Ele é naturalmente um sobrevivente de todas as tempestades que a vida lhe enviou. Ele é da estirpe dos heróis!

Este é que é o meu rico primo Genuíno, neto de meu Avô.


Horta, Maio de 2009

Margarida de Bem Madruga

Elisabete disse...

João: Fizeste muito bem ao escreveres ao Provedor. Esperemos que resulte!
Ibel: Obrigada pelo texto. Se a Margarida consentir, amanhã publico-o aqui.
Abraços

Ibel disse...

A Margarida até ficará contente.Tenho acerteza.
Beijinhos