domingo, 14 de setembro de 2008

AS MEMÓRIAS DO JOÃO COELHO...

Castelo de Vide e os Açores
Os tons de verde em Castelo de Vide foram a primeira "marca" que me fez lembrar S. Miguel, quando conheci a "Sintra do Alentejo" nos idos de 80... Outra marca, a pronúncia dos locais, com o "u" acentuado, semelhante à micaelense. Dizia-me Carolino Tapadejo, então Presidente da Câmara, que isso teria a ver com a ida de mais de uma centena de famílias judaicas para S. Miguel e com a sua fixação, na zona de Castelo de Vide, no regresso ao Continente ( e, se não erro, o Município local terá colaborado com a Câmara da Vila da Povoação, na realização de trabalho de investigação sobre a matéria).
Castelo de Vide é terra natal de Mouzinho da Silveira que tem fortes ligações aos Açores, para onde foi forçado a deslocar-se em 1828, fixando-se na ilha Terceira. Em 1832 forma-se, naquela ilha, o Ministério Liberal, com Mouzinho e Almeida Garrett, entre outros; ocupando a pasta da Fazenda, Mouzinho toma uma série de medidas em prol da melhoria das condições de vida dos açorianos - uma delas, para protecção da ilha do Corvo, leva a que a população envie um grupo de representantes à ilha Terceira (em barco a remos!) para agradecer a Mouzinho da Silveira. O político, sensibilizado pela atitude, diz então que, quando morrer, quer ser sepultado no Corvo... o que acabará por não acontecer.
Outro filho ilustre de Castelo de Vide, é Salgueiro Maia, capitão de Abril. No pós 25 de Novembro, foi colocado em S. Miguel, no Batalhão de Infantaria nº18, provavelmente por o considerarem um perigoso "esquerdista"... E por lá andou, passando por provocações várias de "democratas" locais, até voltar ao Continente para, imagine-se, dirigir o Presídio Militar de Santarém...
Gosto de Castelo de Vide pelas razões apontadas, e também pela índole dos seus habitantes. É gente que passa o tempo a inventar partidas e brincadeiras, de uma forma que nunca vi noutras paragens. Por exemplo, quando Carolino Tapadejo dirigia a Câmara, participou numa "história" que levou alguns crédulos da terra a acreditar que, para se casarem, tinham de ir à Autarquia, receber uma "guia de marcha" assinada pelo Presidente e com carimbo da Câmara, rezando que " seguia o mancebo fulano de tal para a Igreja de Castelo de Vide, no dia tantos de tal, a fim de que se celebre casamento com fulana de tal... etc." - mais ou menos nestes termos. E, noutra ocasião, convenceram uma figura da terra, conhecida pelo seu conservadorismo e aparente exigência de rigores morais de que ia abrir, em Castelo de Vide, uma boite com dançarinas de strip tease, com inauguração a horas escusas... por volta da meia-noite, ou coisa assim. Depois de "adubarem" o indivíduo com informações muito sigilosas sobre as características do estabelecimento, foram pôr-se à espreita, na noite da suposta abertura, para apanhar o fabiano a rondar o local, à espera de entrar no "antro do pecado"... ao arrepio das suas propaladas virtudes de cidadão exemplar.Outra situação teve a ver com o facto de, em Castelo de Vide, existirem associações de indivíduos com o mesmo nome: os Josés, os Manueis, etc. Mas, como em boa terra alentejana, ficavam de fora uma data de cidadãos, com nomes estranhos - como Carolino Tapadejo. Então formaram a Associação dos nomes estranhos, que tinha um dia de comemorações, integrando um cortejo, com estandarte próprio, que se deslocava ao cemitério, em homenagem aos sócios falecidos, e um almoço, com discursos em louvor dos marginalizados pela estranheza do nome...
Enfim, qualidade de vida..

15 comentários:

Ibel disse...

Belíssimas memórias, sim senhor.E muito fiquei a saber.Não conheço Castelo de Vide.É uma vergonha! Ah, mas agora hei-de lá ir.

Cris disse...

Adoro ler as memórias de João Coelho.Beijo para os dois.
Elisabete e João.

joão coelho disse...

Obrigado às meninas todas. Vós sois muito gentis..e as vossas palavras aconchegam-me a alma..E façam favor de conhecer Castelo de Vide - sem esquecer Marvão, ali à beira - mais Portugal todo, do Minho ao Corvo.

Bjinhos

J.Coelho

Daniel de Sá disse...

Como sempre, meu Caro João, belíssima evocação de terras e pessoas.
No entanto, se me permite, faço uma pequena correcção histórica. Na zona de Castelo de Vide, Nisa e Alpalhão, há de facto um sotaque muito semelhante ao de S. Miguel. É bem provável que a influência tenha sido de gente que foi de cá, mas não se tratou de judeus, que ao tempo eram poucos nas ilhas. A vinda, em tempos modernos, de judeus para os Açores, originários de Marrocos, dá-se por volta de 1820, sendo a família mais conhecida a Bensaúde. O que aconteceu foi que o Alentejo estava despovoado, com cerca de setecentas herdades abandonadas. Por isso Pina Manique ordenou a ida de centenas de famílias micaelenses para recuperarem essas terras que nada produziam. Esta vaga emigratória deu-se pelo ano de 1796.
Um abraço.
Daniel

joão coelho disse...

Caro Daniel de Sá

A sua correcção faz todo o sentido, e é uma achega valiosa para todos quantos se interessam por estas coisas da nossa terra..e mostra que ainda temos muito para conhecer.
Sei que foi com os Bensaúde - judeus sefarditas - que se iniciou a presença judaica nos Açores.
Mas o Presidente da Câmara de C. de Vide na altura, Carolino Tapadejo - estou a falar dos começos da década de 90 - estava convencido de que teria existido outra relação com o Arquipélago, anterior à do Séc. 18, qualquer coisa que ele relacionava com a expulsão dos judeus, no Séc.15, do território continental. Sei que ele contactou a C.Municipal da Povoação para desenvolver cooperação nesse sentido, mas não conheço desenvolvimentos dessa iniciativa. Tenho ideia de que próximo de C. de Vide há um lugar/aldeia com "Açores" (será Vale de Açores?) na designação, mas não não posso precisar...
Entretanto, o resultado final destas peripécias- aqueles "toques" do sotaque micaelense - foi uma agradável surpresa para um "corisco" como eu.

Um abraço

João Coelho

Daniel de Sá disse...

Meu Caro João Coelho
No Alentejo, há Vale de Açor, bem mais perto de Ponte de Sôr do que de Castelo de Vide. E há, a sul de Beja, Vale de Açor de Cima.
Em Celorico da Beira, há a freguesia dos Açores, onde se venera a imagem de Nossa Senhora dos Açores, que era de grande devoção de Gonçalo Velho Cabral, pelo que há quem diga (e eu acredito nesta hipótese) que foi em honra dessa sua devoção que estas ilhas tiveramm nome.

Daniel de Sá disse...

Meu Caro Amigo João Coelho
Os judeus que viviam cá no tempo de D. Manuel foram expulsos para o estrangeiro, tal como os do "Reino".
Se quiser saber mais acerca da emigração hebracia de 1818/1820, pode consultar a Enciclopédia Aoriana, concretamente neste endereço:
http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/enciclopedia/ver.aspx?id=5149

Elisabete disse...

Os meus agradecimentos a todos. Aos que aprendem e aos que ensinam neste espaço.
Para mim, é óptima esta discussão da História das Ilhas e de Portugal.

joão coelho disse...

Obrigado, mestre Daniel de Sá.
..Quer dizer..vamos parar a Celorico da Beira, terra de eleição do sr.prof.Marcelo Rebelo de Sousa, mai-la a sua Biblioteca...
É bem capaz de valer uma Missa, essa freguesia dos Açores..vai ficar já marcadita uma visita em próxima "ponte" , com compromisso, aqui lavrado, de reportagem fotográfica.

Um abraço

J. Coelho

Ibel disse...

Mas estes diálogos sõ um espanto!
Que bom! Que bom!

Beijos para todos.

Ibel disse...

Já tenho agendada a visita, joão!

joão coelho disse...

As andanças pelo mundo dos açorianos são qualquer coisa de admirável. Bem sei que os portugueses, em geral, são dos 7 mares andarilhos, mas os naturais das ilhas de bruma, parece-me que, sem bairrismos, se destacam..
Cedo foram para o Brasil - há pouco tempo descobri que até armações baleeiras criaram naquele país - depois rumaram aos Estados Unidos, fugindo, clandestinamente, nos navios-baleeiros norte-americanos - Herman Melville refere-os no "Moby Dick" - alguns trabalharam nas "farms" da Califórnia ( e Steinbeck também os cita em alguns dos seus livros ) e outros criaram empresas de pesca ao atum, em San Dego; participaram também na grande corrida ao ouro, ainda nos EUA, no Século 19, dobrando o Cabo Horn, de barco, ou atravessando as pradarias, para chegar ao Klondike.. Partiram também para o Havaí, dizendo-se que com as "malassadas" deram origem aos "donuts", voltaram a partir para a América, já no Século 20, e nos anos 50,do mesmo século, foram até ao Canadá, abrir as linhas do caminho de ferro para o interior daquele país..Também os levaram para África, para os colonatos em Angola e Moçambique, em viagens directas, dos Açores até àquelas terras - homens, mulheres, crianças e vacas,tudo na mesma Catrineta, por aqueles mares abaixo, durante um mês ou mais..
E depois aparecem um pouco por todo o lado: Ana Maria de Jesus Ribeiro, descendente de açorianos, conhece, no Brasil, Garibaldi, o revolucionário que unificou Itália; fica conhecida como Anita Garibaldi, a "heroína de dois mundos", e acompanha o marido até morrer, doente, na terra de Verdi..
Bento de Gois, nascido Luis Gonçalves, em Vila Franca do Campo,em S.Miguel, entra na Companhia de Jesus e torna-se no primeiro europeu a cruzar a Ásia Central, da India até à China - 6 mil kms, em 3 anos - numa viagem que é comparada à de Marco Polo.
E fazem coisas bizarras..Joshua Slocum, o grande marinheiro americano, é o primeiro homem a fazer a volta ao mundo, à vela, em solitário; sai de Boston em 1895, regressa 3 anos depois, com 46 mil milhas percorridas, no seu iate "Spray" - passa pelo Faial, onde fica alguns dias e, em 1896, chega a Juan Fernandez, no Pacífico, onde viveu durante 4 anos Alexander Selkirk, o homem cuja aventura inspirou Daniel Defoe na criação do "Robinson Crusoé"..Slocum é recebido por uma embarcação local, cheia de gente, mas há uma figura que se destaca a bordo: é o "Rei" da terra, Manuel Carroça (Slocum escreve Carroza)antigo tripulante de um baleeiro
americano, natural dos Açores, que se fixou ali; há um governador oficial, mas Carroça é o "monarca" eleito pelos locais..
Quantos terão saído dos Açores, ao longo dos tempos? E quantos serão os seus descendentes?
E se fossemos americanos, quantos filmes não teriam sido já feitos sobre estas epopeias todas?

Saudações atlânticas

Ibel disse...

Se fóssemos americanos,teriam sido escritas muitas coisas destas, mas não esta como o João,só por amor, soube dizer.

Elisabete disse...

Subscrevo o último comentário da Ibel (e os outros também).
Riquíssimos estes seus comentários, João! Muito, muito obrigada!

joão coelho disse...

A vossa gentileza desvanece-me...E mantendo o receio de abusar, não resisto a contar mais um pequeno/grande episódio ligado à circum-navegação, à vela e em solitário, de Joshua Slocum, no iate "Spray". Já de regresso aos EUA e antes de uma cabra que lhe tinham oferecido algures lhe comer as cartas (mapas) de navegação, Slocum para na África do Sul; é presidente - estamos em 1897, à beira do século 20 - da República do Transvaal, Paul Kruger, um calvinista, figura fundamental na criação da União Sul-Africana. O homem ouve dizer que Slocum está a fazer a volta ao Mundo e convida-o para um encontro..para lhe comunicar que há, na viagem de Slocum, um erro, erro grave na perspectiva de Kruger..Como podia o americano afirmar que fazia "a volta ao Mundo" se a terra é plana?
Não, ele estava a navegar pelo Mundo..e não à volta dele..! Slocum percebeu que não valia a pena contrariar o senhor e lá seguiu viagem até Rhode Island, onde chegaria já em 1898.
O relato deste viagem resultou num livro, "Sózinho à volta do Mundo",já editado em Portugal.

Abraços com saudações marinheiras

J.Coelho